" Vento em Madeira "
M 1039 - CB 7898909537 375
Léa Freire + Teco Cardoso + Tiago Costa + Fernando Demarco + Edu Ribeiro
Convidada Especial: Mônica Salmaso

Direção Geral - Léa Freire
Produção musical - Teco Cardoso
Gravado em Outubro de 2009 no Estúdio Sollua por Alberto Ranellucci
Mixado e masterizado no Referece Estúdio, por Homero Lotito e Teco Cardoso
Produção executiva - Rita Cabral
Assistente de produção - Victor Labate
Fotografia locação - Mônica Salmaso e Teco Cardoso
Fotógrafa contracapa - Dani Gurgel
Projeto Gráfico - Marcilio Godoi
Montagem Memo Editorial
Produção Gravação e Shows - Rita Cabral e Andréa Costa

Agradecimentos:
Luciana Rathsam, Théo Ribeiro, Evans / Musical Express.
Atelier de Saxofones e Clarinetes Daniel Tamburin, Flora Tonelli e pessoal da Musical Express, Orfeo Borgani, Ilzinha Santos da Silva, Victor Labate, Rita Cabral, Andréa Costa, Sérgio Albach, Homero Lotito, Marcílio Godoi, Thomas Clausen e Olivio Valarini Jr. E a toda a "Gargolândia", Raphael, Rita, Gabriel, Pedro e Mariana Altério assim como Cristina de Oliveira, Ana Maria Machado e Gilberto Batista.


De vento para madeira - por Léa Freire



A música, em essência, é uma conversa trazida em ondas sonoras, é uma troca de vibrações assopradas em nossos ouvidos, é vida transmitida de pessoa para pessoa. Pode ser explanação ou diálogo, ensaiada ou de improviso. Pode ser simples ou sofisticada. Pode provocar a reflexão ou a dança. Pode ser divina ou mundana. E pode muito bem ser tudo isso ao mesmo tempo

Vento em Madeira busca o equilíbrio harmônico, rítmico e melódico entre o rigor e a liberdade, entre a estrutura e o improviso, entre a matemática e o gesto, entre a tradição e a vanguarda, entre a ordem e o caos. E busca também o exercício mental e emocional da diversão. Ambicioso? E por que não?

As formas de expressão que encontramos até agora em nosso trabalho musical não dispensam os improvisos, mas os trabalham de um modo mais elaborado, sem abandonar, é claro, a liberdade doi solista. Ao manter a linguagem musical dos temas em questão, em outras palavras, o assunto da conversa, acabamos encontrando o que poderíamos chamar de "solo de arranjador", com um exercício constante de composição.

Daí começam a surgir solos em duo, como os do Teco com o Edu, em Viva Júlia, e como os do Teco como o Tiago, em Choro na Chuva. Quando nos demos conta do processo, ensaiamos depois, em A Fuga da Zabumba, um verdadeiro solo coletivo, muito estudado, mas também apoteótico, em traquinagem rítmica sem censura nem sisudez.

A coisa acabou nos pegando. E ensaios muito frequentes tornaram-se essenciais, havendo ou não concertos em vista, para garantir que esse repertório camerístico, improvisado-criativo, cheios de nuances calculadamente livres e com formas extensas pudesse ser executado fluidamente. Adotamos então a postura de concerto, de um concerto decorado.

Era preciso estar sempre ouvindo todos os demais, respondendo aos arranjos e às delicadezas propostas e respeitando-os com a reverência e a ginga de quem não sobrepõe vozes em uma conversa. Foi como estar no risco e conforto ao mesmo tempo. Encaramos o desafio de levar ao ouvinte a diversão de descobrir esse vocabulário musical tão rico quanto inusitado.

Acho um privilégio poder fazer música assim. Na verdade, acho vários privilégios: ter nascido em um país com imensa diversidade musical, viver em uma cidade que abriga infinitas manifestações de gente vinda de toda parte, vir de uma família que sempre incentivou a prática da música e poder contar com a parceria dos músicos que fazem parte deste projeto, grandes e queridos amigos meus. Essa diversidade mais que liberta e amplia: semeia.

A temporada que passamos em família na fazenda do Altério "alterou" positivamente o produto final, pois reforçou a ideia de que estávamos no caminho certo e nos deu a confiança de que poderíamos obter êxito. Cada uma das faixas tem uma história particular, um propósito, um olhar e um desenrolar inesperado para cada um de nós, mas, e hoje a gente enxerga isso bem, com resultado sonoro totalmente alinhado com a proposta pensada inicialmente.

Em outras palavras, descobrimos que, entre uma coisa boa e outra coisa boa, é melhor ficar com as duas e trabalhar para que conversem do jeito mais legal, pois somar multiplica.

Vamos lá, faixa por faixa:


1. Vento em Madeira [7:27] - Léa Freire

Escrita sob encomenda (e dedicada) ao flautista Keith Underwood (NY University), a princípio em uma versão para flauta e piano, Vento em Madeira ganhou versão sinfônica no CD Cartas Brasileiras (maritaca 2007), meu primeiro arranjo sinfônico. Keith queria uma coisa flautística e desafiadora. Mas ele é um virtuose tal que mesmo a minha maior "maldade" não o abalaria. De todo modo, tem tocado essa peça "com o pé nas costas" pelo mundo inteiro, nos workshops que realiza.

Trata-se de um passeio pelo Brasil com ritmos como coco, ciranda e baião, em mix paulistano que viaja também por sonoridades sinfônicas e que apresenta basicamente quatro partes: uma de melodia em 2/4; outra em 3 sobre 2, em que se exploram efeitos de tercina e às vezes se assume o 2 completamente; uma terceira que remete a pífanos e paisagens; e uma quarta parte, em que uma rítmica de colcheias pontuadas se superpõe ao 2/4, criando uma impressão de 3 que se dissolve para os solos de piano e sax. Deu para entender? Todas as vezes que se volta a essas partes, elas têm um enfoque diferente, novos contrapontos, nova rítmica.

A melodia inicial lembra uma romaria, seguida de um 6/8 de terreiro - haja sincretismo - o piano entra chamando pife - e as coisas se misturam - pife, romaria, terreiro - as paradas lembrando as que se fazem nas visitas do Divino. Atenção para Mônica Salmaso no papel de flauta G nos contracantos! Um breve "solo de arranjador" da flauta chama a quarta parte (solos), que começa somente com piano e baixo aos quais se unem bateria e sopros (incluindo a flauta G...). O solo do piano constrói uma história e entrega tranquilamente para o solo do sax em que os pratos da bateria constroem uma cortina, como pequenos vagalumes na noite, já preparando para o solo de bateria que acontecerá em seguida. Uma melodia francamente nordestina e "pifanística" chama o solo de bateria, executando sobre uma linha grave em uníssono, que por sua vez evolui para uma nova terceira parte, dessa vez com solo de sax e daí para o crescendo final - em que se chama pela melodia inicial, gritam os "pifes" e o desfile vai parando. Mas o acorde final não é definitivo: deixa espaço para mais. Quem não é músico não vai entender, mas vai sentir, o que é uma forma de entendimento.


2. Dez e Trinta e Um (10:31) [5:55] - Edu Ribeiro

Tema em 5/4, mas que não se "entrega" logo de cara. A execução leve não deixa a impressão de compasso ímpar e começa mostrando somente a harmonia com o trio piano / baixo / bateria. Os instrumentos vão-se somando até atingirem um delicioso frevo em 5/4. Daí acontece um sensacional solo de flauta G do Teco Cardoso, seguido pelo não menos criativo Tiago no piano, deixando o trio muito à vontade - o que não é tão simples assim, em se tratando de um compasso ímpar. A melodia é assoviável - um feito e tanto para o compasso - e se despede claramente. O nome do tema vem de minha total ansiedade para o primeiro ensaio do grupo, marcado para 10h30. 10:31 foi o horário em que eu liguei para o Edu para perguntar se ele já estava chagando...


3. Copenhague [2:52] - Léa Freire

A beleza da capital dinamarquesa tem uma melancolia que só ouvindo. Optamos nesse tema por uma formação camerística de flauta G, flauta-baixo, piano e contrabaixo em que às vezes se caminha pelo bitonalismo e se exploram as vozes internas da melodia. A melodia e a harmonia se alternam entre tensão e relaxamento. O primeiro A é exposto pelas flautas e o contrabaixo; o segundo se inicia somente com o piano, ganha contrabaixo e vai para a parte B, que é uma valsa a tempo que, na segunda vez , ganha um lindo "solo arranjador" de piano. O terceiro A acaba com melodias ascendentes e descendentes que se cruzam no caminho e terminam em um lamento que se perde na neblina. A peça inteira é executada ad libto - isto é, com o ritmo variando de acordo com a interpretação, o que exige que todos estejam se ouvindo muito atentamente. Outro detalhe interessante é que não dá pra gravar separado. Tem de ser tudo junto, aqui e agora. Dedicada ao pianista dinamarquês Thomas Clausen.


4. Choro na Chuva [6:22] - Léa Freire

Choro composto em um dia em que chovia, claro, mas a chuva começou gotejando aqui e ali e foi evoluindo até se tornar um retumbante 17/156, cheio de trovoadas. Aí, pronto. Em princípio, foi dificílimo de ser executado, muito por culpa dos relentandos e apressados que a forma contém e exige. Esse tema adquiriu uma intensa sintonia especialmente do quarteto Teco, Tiago, Edu e Fernando, que executa a base da parte em 17 para um solo de flauta que busca representar a ventania enquanto a chuva tamborila sem parar, com raios e tudo. A tempestade vai-se acalmando e volta o choro, quando entram os solos do Teco, do Tiago e dos dois juntos. A conversa entre os dois é surpreendente fluente e rica, dá gosto. O choro volta depois da chuva. Tudo está bem, dia claro, vamos em frente.


5. Viva Júlia [6:16] - Tiago Costa

Um tema lindíssimo do Tiago Costa, com um dos "B" mais bem sucedidos e felizes de que tenho notícia. A extrema delicadeza do tema e da harmonia (ótima para improvisos!) lembra bem a feliz homenageada, filha do autor. O trio que expõe a melodia afina que dói! Depois da flauta, o piano sola sobre uma base escrita pelo autor, que une voz, flauta-baixo e sax alto e gera um timbre interessantíssimo. Uma conversa de sax e bateria se segue e o tema é re-exposto por todos em vozes que foram surgindo da maturidade de execução a que se chegou depois de um ano de intensos ensaios".


6. Frango no Trevo [3:13] - Teco Cardoso

Deliciosa história de amor que reúne uma passista de frevo e um tanguero - Frevo e Tango - Frango no Frevo, imagine a cena. Acentuações da harmonia em pontos estratégicos da melodia criam um efeito rítmico muito gostoso. Um intermezzo com flautas de bambu tocadas ao mesmo tempo pelo Teco recria a sensação de festa de rua. A tristeza do tangueiro no final diz que durou pouco...
Dedicada ao baterista argentino Claudio Sloan.


7. Luz Negra [6:51] - Nelson Cavaquinho

Nelson Cavaquinho dispensa apresentações. Uma de suas obras primas é esse samba-canção maravilhoso, que aqui ganha dois " banhos de loja", na re-harmonização e na maravilhosa interpretação na voz cheia e quente de Mônica Salmaso. Transbordante de elegância, sempre que ouço fico suspirando. Aqui os improvisos acontecem primeiro, reinventando o tema " improvisos compositores". O tema começa a ser exposto no B, com lindos comentários do piano. No B "aparece" um "harpista": uma ideia genial do Tiago de fazer glissandos em vez de acordes, no final, flauta-baixo e sax-alto trocam um motivo melódico, em um vai e vem sob notas do piano., e a Mônica anuncia: estou chegando ao fim... como se vê há também "improvisos cantores"...


8. Mamulengo [5:50] - Léa Freire

Nos desfiles de blocos de Maracatu, bonecos mamulengos, enormes e sorridentes , balançam os braços aleatoriamente, bem fora do ritmo, na maioria das vezes. Buscou-se um atraso na melodia que lembrava esse efeito e descobriu-se que isso, na realidade, acaba por valorizar todo o resto - harmonia e ritmo. Momentos de melodia são estremeados por um motivo ao piano (cheio de intervalos de 2ª.) que lembra a maravilhosa "desafinação" que grandes grupos desfilando pelas ruas costumam gerar e que são o sal da coisa. Voz e flauta, sax e baixo fazem duplas e o piano costura tudo. "Derrepente", da harmonia dos solos (de baixo e sax) surge Ciranda-Cirandinha, ou quase, tocada sempre um pouco antes do tempo, e vai-se para um final que vai ficando cada vez mais curto, até sumir em um remoinho. Dedicada ao compositor mineiro Sérgio Santos.


9. A Fuga da Zabumba [6:45] - Teco Cardoso

Começa com uma "fuga", forma musical muito explorada por Bach e outros na música erudita. Villa-Lobos preferia chamar de "conversa" essas melodias que fogem umas das outras e se encontram das maneiras mais engenhosas. Fuga da Zabumba começa com uma fuga improvisada, em que os motivos que um sugere vão sendo comentados pelos outros, até que se estabelece um "consenso". Daí entra a zabumba, em uma melodia a três vozes (sax, flauta e piano) - ou na verdade três melodias que deságuam em um maracatu em 6/4, em que se constrói um "ostinato" (melodia obstinada) que vai chamando o solo de saxofone e piano. Esse mesmo ostinato volta como base para o solo de bateria e se transforma no tema da nossa zabumba fujona, que volta, após rolar livremente, e pula faceira no colo da gente.


Um Breve Histórico - por Teco Cardoso

A ideia inicial era a de criar um grupo para executar o material gravado no "Cartas Brasileiras", último CD da Léa Freire que produzi e para o qual vestimos as faixas com formações que iam do duo de voz e piano à Orquestra, passando por quinteto de clarinetes entre várias outras formações. O CD começa com a composição "Vento em Madeira", peça arranjada para Orquestra que escolhemos para a abertura pois dava uma dimensão de Brasil de Norte à Sul, do Passado ao Futuro, Tradição à Experimentação, do Popular ao Erudito e mostrava bem a Léa compositor, que transitava tão bem entre "Villas" e "Pixinguinhas". Esta composição acabou sendo a referência para formarmos, depois de lançado o CD, um grupo para executar este material. O desafio era o de condensar composições, arranjos e orquestrações elaboradas, para uma formação menor sem perder a essência. Depois de algumas tentativas chegamos de volta ao bom e velho quinteto de base, com 2 sopros e um trio (piano, contrabaixo acústico e bateria). Nasceu então o grupo que acabou sendo batizado de Vento em Madeira.

Deu-se uma junção única e rara de bons músicos, compositores, arranjadores e improvisadores (além de ótimos leitores) e com disposição para encarar um desafio que demarcava tempo e dedicação. A ideia era a de colocar de pé, com ensaios regulares, um material de proporções inusitadas, com longas e elaboradas composições e orquestrações, com variadas possibilidades de improvisações - que acabariam sendo relidas pelo grupo com uma certa liberdade.

Percebi que os trabalhos que eu mais gostava e voltava a ouvir sempre (e que nunca envelheciam), eram justamente aqueles em que era perceptível o alto grau de elaboração e interação do grupo, fruto de uma dedicação de quem ensaiava muito e com muita regularidade para fazer o difícil (e, na maioria das vezes, complicado), soar algo absolutamente fácil e descontraído.

Era este o nosso desafio e passamos a ensaiar semanalmente por um ano. Logo percebemos que, mais do que reler o material do "Cartas Brasileiras", tinhamos uma formação que tinha "fôlego" para ir além. Assim, foram aparecendo composições novas especialmente escritas para o grupo e cujo resultado já apontava para um trabalho novo e original.

Em muitos trabalhos, levanta-se rapidamente um material para gravar logo e, às vezes, algumas composições nascem literalmente na sessão de estúdio e depois é que acontecem os shows, quando esse material vai se acomodando e amadurecendo.

O resultado é que você acaba vendo um show muito mais interessante do que o CD que você levou para casa logo depois.

No caso deste trabalho, fizemos 6 meses de ensaios regulares antes da primeira apresentação em palco e mais 6 meses de ensaios e apresentações antes de entrarmos em "estúdio".

No correr deste ano nasceram composições novas suficientes para um disco e meio, os arranjos foram mudando e chegamos ao estúdio com o material já devidamente decorado, sem a necessidade das partituras, o que muda muito a interpretação. Convidamos Mônica Salmaso para uma participação especial em shows que acabou ficando para o CD também, claro.

Um grupo é um verdadeiro casamento, formou-se ali uma família e esta não poderia ser mais harmônica. Muito bom humor e boa vontade, aliada a muita dedicação e admiração mútua. Aos poucos fomos sentindo que o grupo criava uma linguagem própria e que as composições iam amadurecendo. Algo entre o espontâneo e a liberdade da música popular improvisada e o acabamento e o rigor da música de câmara erudita, buscamos ir além, transcendendo limites, apaixonados pela música e seu aprendizado, com a vontade e a disposição de estudar e de melhorar sempre, mostrando um outro Brasil, mais complexo, mais elaborado e talvez até mais contemporâneo - uma opção que dá mais trabalho, mas também muito mais prazer. O Vento tem a cara de um Brasil diverso, erudito e popular, formal e criativo, multi-cultural, vivo e em formação.

Após 1 ano de trabalho a "família" estava merecendo umas "férias" e lá fomos nós com devidas esposas e filhos para uma deliciosa semana na fazenda do Rafael "Garga" Altério, amigo, fazendeiro e compositor, que "por acaso" tem aos fundos da sede de sua linda fazenda no interior do Estado de São Paulo, um maravilhoso estúdio de gravação. Então, (entre piscinadas e refeições inesquecíveis) fomos gravando o material deste CD e parte do próximo, num clima de descontração e de concentração difícil de se conseguir estando numa cidade como São Paulo.

Oito composições originais de quatro integrantes do grupo, mais um clássico de Nelson Cavaquinho em versão instrumental & vocal compõem o repertório deste CD, que passeia entre choros e frevos, masculino e feminino, clássico e popular, formal e criativo, visível e invisível, Vento em Madeira.


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