Diário do Nordeste
Correspondências transcendentais

por: Henrique Nunes
22.08.2007

Herdeira da tradição de grandes flautistas do Brasil, a paulista Léa Freire se consolida na seleção dos instrumentistas contemporâneos brasileiros em Cartas Brasileiras (Maritaca)

Villa-Lobos, Francisco Mignone e Tom Jobim; Keith Underwood, Gil Jardim, Nailor Proveta, André Mehmari, Mônica Salmaso, Teco Cardoso... Amigos de distâncias diversas, aproximados sempre que a música os convoca. Correspondentes de uma musicalidade nossa, mas em contato também com outras referências, eruditas e populares. Canções, choros, valsas e sambas impressionistas. Música que flui além das mídias, em direção ao sentimento de quem passa.

As composições do quinto álbum de Léa Freire nos conduzem a lugares e situações de fronteiras precisas e transponíveis. Isto, claro, entre parceiros representados por singelas ilustrações de animais metamorfesados com instrumentos: ´Percebo claramente que, ao longo dos últimos séculos, criou-se aqui uma terra musical meio fantástico, onde seres meio instrumentos passeiam entre bichos músicos fazendo uma música que é brasileira e que só acontece aqui, mas que não é só Brasil. Adoro música erudita tanto quanto música popular, sempre acreditando na idéia do encontro de tudo o que é bom. Para além de classificações e rótulos. Há, no entanto, em todas as áreas do conhecimento e da arte, uma linha tênue entre a fusão e a confusão´, descreve Léa, no belo encarte.

Encontro da raça

O solo do sax alto de Nailor ´Proveta´ Azevedo, em ´Nove Luas´, por exemplo, nos leva mais longe do que prospecta a própria Nasa. Segundo Léa, ´a música fala de espera e de nascimento. Coisa de menina´. Que bom então que sua orquestra de câmara, presente na maioria destas correspondências com o infinito, traga outras meninas: os primeiros violinos de Soraya Mancini Landim e Irina Kodin; o segundo de Kátia Spassova Costa, a flauta de Suzy Shwartz, o cello de Adriana Holtz, a harpa de Liuba Klevtsova e os violoncelos de Íris Regev, Heloísa Torres Meirelles e Marialbi Trisolio. Em ´Espiral´, Léa assume o piano, outrora de André Mehmari, Paulo Braga, Felipe Senna, Tiago Costa e Mozar Terra, entre as harmonias ascendentes vocalizadas pela menina Mônica Salmaso. Os choros ´Caminho das pedras´, ´Vila Ipojuca´ e ´Choro na chuva´ e ainda a valsa ´Maré´ confirmam essa convivência feliz entre elas e meninos, também de variadas formações, como Igor Sarudianski, Izaías Bueno Almeida (bandolim) e Paulo Bellinati (violão de seis).

O samba-canção ´Rabisco´ também converge para outros engates harmônicos, no tamborim de Mônica Salmaso, no clarinete, no sax, no arranjo de Proveta. ´Esse cara está mudando a história da música brasileira´, diz Léa, em outro texto do encarte. Daí pro samba-jazz ´Domingo de manhã´, que fecha as correspondências, num circuito de brasilidade em homenagem a Ayrton Senna. O arranjo do pianista Mozar Terra, falecido pouco antes do lançamento do álbum, corresponde-se com algumas outras feras: trompete de Walmir Gil, trombone de François de Lima, baixo de José Alexandre Carvalho e bateria de Edu Ribeiro, além do sax barítono de Teco Cardoso, do soprano de Victor Alcântara e da flauta de Léa. Fazendo uma correspondência com a inicial ´Vento em madeira´, dedicada ao flautista norte-americano Keith Underwood, ou o maxixe de depois, ´Bis a bis´, constatamos como, através dos interlocutores certos, transcender linguagens, sobretudo através das matrizes brasileiras, continua sendo algo muito natural. Né não, Tom? Né não, Villa?

FIQUE POR DENTRO

LÉA FREIRE: FLAUTA ALÉM DA MARITACA

O lançamento de ´Cartas Brasileiras´ atesta a dedicação de Léa Freire à música brasileira. Lapidado por dois anos, o projeto que reúne 66 instrumentistas foi ´tocado´ ao longo dos outros desenvolvidos em sua gravadora, a Maritaca. Entre eles, os dois volumes de uma Antologia da Canção Brasileira. Da formação em piano, aproximou-se de Camargo Guarnieri, Villa-Lobos e Radamés Gnattali, além de Bach e Debussy. Simultaneamente, fez pesquisas em torno de rock, jazz, bossa nova, choro e outros ritmos brasileiros. Inaugurando o selo Maritaca (hoje já com 20 títulos), a flautista lançou seu primeiro álbum há dez anos, tendo atuado ao lado de nomes como Marlui Miranda, Joyce e Hermeto Pascoal. Ministrando cursos de percepção musical para improvisação, Léa já editou dois livros de partitura: ´Cadernos de Composição´ (Mozar Terra) e ´Quinteto´ (dela e Teco Cardoso).

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