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Três discos instrumentais imperdíveis
por:
Rafael Fernandes

25.10.2006

Tem virado moda dizer que não há grandes compositores e canções atualmente no Brasil. Ainda que isso não seja necessariamente verdade (e não é), é impossível negar que na música brasileira o momento é da música instrumental. Como diria o outro, “nunca, na história desse país” houve quantidade tão grande de instrumentistas da mais alta estirpe. Claro que isso é um exagero, já que outras épocas trouxeram ícones musicais – grandes instrumentistas que influenciaram e influenciam diretamente a música tupiniquim; músicos que são verdadeiras “escolas” musicais, do naipe de Jacob do Bandolim, Baden Powell, Garoto, Dino Sete Cordas, entre tantos outros (e bota tantos nisso!). Mas é inegável que os últimos anos têm sido prolíficos em lançamentos de alto nível, com grande variedade de instrumentos, estilos e gerações. E mais, a grande maioria dos músicos tem lançado regularmente grandes discos. Ainda que os lugares pra tocar música nova de qualidade (e não covers ou rock de garagem) continuem sendo restritos e que a divulgação ainda seja precária, a cada ano mais lançamentos entram no mercado, principalmente por gravadoras pequenas e médias.

Três lançamentos desse 2006 atestam o altíssimo nível em que se encontra a música instrumental brasileira: Unha & Carne, de Marcus Tardelli e Nem Sol, Nem Lua de Toninho Ferragutti, via Biscoito Fino e Já Tô Te Esperando, de Edu Ribeiro via Maritaca. Em tempos em que se discute formatos de áudio como MP3 ou WMA (ou seja, compra de músicas avulsas) esses lançamentos são obras que fazem ótimo uso do formato “disco”, com consistência e fôlego invejáveis da primeira à última faixa. São discos de uma relevância enorme; chamá-los de clássicos pode ou não ser exagero, mas o fato é que esses discos têm qualidades artísticas enormes, o que os torna obras únicas e marcantes.

Comecemos com o disco de Edu Ribeiro. AVISO: Este é o Edu Ribeiro realmente talentoso, não aquele tal cantor de reggae que faz uma música repetitiva e sem sal (e ainda por cima é desafinado). Edu Ribeiro de Já Tô Te Esperando é um baterista de classe, com estilo claro e que sabe o que tocar na hora certa, que tira da cartola levadas imprevisíveis e marcantes. O disco aflora o Edu Ribeiro compositor de qualidade, em canções com grande acento jazzístico, sem abdicar de uma cara bem brasileira. Algumas pessoas podem ter a impressão de que um baterista é aquele cara que faz uma barulheira só, que “atravessa” todo mundo na hora de tocar e que não tem qualquer noção melódica ou harmônica. Pode ser verdade para algum baterista fuleiro qualquer, principalmente num momento em que tosquices de rock de garagem são exaltadas como “geniais” e “salvação”, mas no caso de Edu Ribeiro ocorre o oposto. Suas composições demonstram sensibilidade apurada e muito conhecimento musical; há espaço para demonstrações virtuosísticas, mas estas são detalhes, complementos dentro de um contexto musical coerente. O que fica à mostra são boas melodias, arranjos bem cuidados e execuções primorosas de um time que tem Edu como “capitão”, mas que é composto por craques como Fábio Torres (piano), Thiago Espírito Santo (baixo), Daniel D’Alcântara (flugelhorn), Toninho Ferragutti (acordeom - cujo disco será comentado mais adiante), Paulo Paulelli (baixo) e Chico Pinheiro (violão). Este último, aliás, aparece também como compositor em três destaques do disco: a excelente e esperta “Samba do Gaúcho” e em duas parcerias muito boas com Edu (“Cebola no Frevo” e “Cinco”). Entre as demais pérolas do disco (todas de autoria de Edu Ribeiro) estão a faixa-título, “Pro Fernando” – com clima de gafieira e “Pedacinho do Théo”.



Da bateria ao violão. Marcus Tardelli é um músico fabuloso; participou de ótimos discos com o também ótimo quarteto Maogani (do qual não faz mais parte). Unha e Carne, disco em que Tardelli interpreta solo ao violão canções de Guinga, começa de maneira impressionante com uma interpretação vigorosa, quente, cheia de “atitude” (afinal, não é essa a palavra da moda?), virtuosística e precisa de “Baião de Lacan” (Guinga e Aldir Blanc). Um início arrebatador. Na segunda música, o contraponto: interpretação também precisa, porém delicada da linda “Igreja da Penha (Carta de Pedra)” (Guinga e Aldir Blanc). Um disco de violão solo é o que Guinga devia a ele mesmo e a seus fãs. Aliás, ele próprio afirma no encarte do disco. Mas eis que surge Marcus Tardelli e nele está o interprete perfeito do violão de Guinga, como o próprio afirma: “Depois de ouvi-lo, prefiro continuar sendo o compositor popular cujo pensamento será sempre concretizado por ele, Tardelli”. Não à toa, a faixa título foi escrita especialmente para o violonista, que toca “Cheio de Dedos” (Guinga) ainda melhor que o próprio Guinga – algo que parecia impossível. Em “Cine Baronesa” (Guinga e Aldir Blanc) ouço a interpretação que sempre quis ouvir; em “Dichavado” (Guinga) fica claro algo que permeia todo o disco: a execução de um violão de Marcus Tardelli às vezes dá a impressão de que dois instrumentos estão sendo tocados. Unha e Carne apresenta interpretações inspiradas de um músico que sabe quando deve ser forte, quando deve ser delicado; que sabe o momento de mostrar seu virtuosismo e o momento de deixar o silêncio falar. Enfim, um músico que tem consciência que a música é feita de nuances, de contrapontos, de cor, claro e escuro. E, diga-se, as interpretações de Marcus Tardelli mostram de maneira clara a genialidade de Guinga. Vem-me uma palavra que define esse disco: definitivo.



Certamente o acordeom é um instrumento controverso. A coisa mais fácil é ser mal usado e se tornar insuportável; com isso tem até, digamos, uma “má fama” – um deslize e soa brega pra dedéu. Mas eis que surge um disco como Nem Sol, Nem Lua de outro músico fantástico, Toninho Ferragutti, para mostrar todo o potencial desse instrumento. Com onze canções de sua autoria, Toninho passeia por estilos diversos numa consistência estética assombrosa. Tudo ali é bem colocado: arranjos (de Adail Fernandes, Edson Alves, Proveta e outros), interpretações (com participações de Quinteto da Parayba, Alessandro Penezzi, Zé Alexandre e outros) e canções. Toninho, além de mestre do acordeom, é compositor de mão cheia. A faixa de abertura do disco tem um título que casa perfeitamente com a canção: “Na Sombra da Asa Branca”. Na companhia do Quinteto da Parayba (e com arranjo de Adail Fernandes), referências à famosíssima “Asa Branca” e um leve baião se entrelaçam a lindas melodias. Em “Migo”, ecos de bossa nova se misturam com ecos de Astor Piazzolla; na fabulosa “Sanfoneon” Piazzolla está mais presente, a referência é clara e bela. A faixa seguinte é “Sanfonema”, que já comentei sobre num texto do DVD de Yamandú Costa; achei que não poderia haver melhor interpretação do que aquela, mas me enganei redondamente: em Nem Sol, Nem Lua ela aparece ainda mais bela, mais densa. O que não mudou foi minha percepção sobre ela: é uma das grandes canções já escritas no Brasil, em qualquer tempo; e o que esse disco me mostrou de melhor é que ela não é uma música “avulsa” – que um compositor faz num momento feliz e nunca mais consegue repetir: Toninho Ferragutti tem muita bala na agulha, tem muitas canções belíssimas. Neste parágrafo comentei apenas as quatro primeiras faixas, num disco que tem onze! O disco é ótimo e tem outros grandes destaques como “Negra”, a faixa título, entre tantos outros. Se você tem preconceitos em relação ao acordeom (eu também tinha), dê uma chance a você mesmo: ao menos ouça, sem preconceitos, esse disco. Ou melhor, ao menos ouça sem preconceitos os três discos aqui citados. Dificilmente se arrependerá.

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