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- 31/12/2005
"MP do B, a dissidência"

Por: Tárik de Souza

Praticamente à margem da indústria, o instrumental brasileiro resiste.
E brilha

Quem lê um balanço do ano como o que se segue não acredita nos próprios ouvidos ao ligar a maioria das rádios ou zapear pelas principais emissoras de TV. Onde estão estes discos e DVDs? Por que tantos trabalhos de alta qualidade são proibidos pela censura econômica (muito pior que a política) do jabá? Por que as grandes gravadoras quase só investem em lixo e clones estéticos? ''O povo sabe o que quer/ mas o povo também quer o que não sabe'', já cantava o ministro da Cultura Gilberto Gil no lúcido Rep, de seu disco O sol de Oslo, de 1998, que acaba de voltar às lojas, com duas faixas bônus.

A música do compositor, que escreveu outra jóia sobre a questão - Essa é pra tocar no rádio, em 1975 - certamente não tocará no rádio. O ministro poderia dar uma mãozinha, até em benefício próprio, e tentar minorar o problema, que há mais de 20 anos embaça qualquer tentativa de retomada da chamada linha evolutiva da MPB. Se as novas gerações de criadores têm seu acesso ao grande público vetado, como testar sua viabilidade?

Só para dar uma idéia do que ocorre nesses subterrâneos da liberdade, a mais invisível das áreas da produção musical brasileira, a instrumental, cintilou como nunca. Do baú de inéditas do genial maestro pernambucano Moacir Santos (Choros & alegria), também imortalizado no elegante DVD Ouro negro, à recapitulação do diálogo de contrapontos entre Pixinguinha + Benedito Lacerda por Mário Seve + David Ganc (ambos revezando-se entre flauta e sax) e outros excelentes discos de choro, como os revelados no Prêmio Visa, Danilo Brito (Perambulando) e Quatro a Zero (Choro elétrico).

E ainda, Márcia Taborda (Choros de Paulinho da Viola) e a festa dos 30 anos, do Galo Preto. Violões do Brasil, projeto de Miriam Taubkin, inventariou em livro, CD e DVD o instrumento onde hoje pontifica Yamandú Costa (agora em DVD Ao vivo) e debuta Marcel (filho de Baden) Powell (Aperto de mão).

Entre a modernidade e a vanguarda - como se situa a Antologia da canção brasileira da flautista Léa Freire e o trombonista Bocato -, o laboratório instrumental voltou a fervilhar em discos como Oiapok Xuí, do grupo Uakti, Pau Brasil 2005 (Grupo Pau Brasil), Calendário do som (Itiberê Orquestra Família), Chegada (Naná Vasconcellos). E, na linha do samba jazz, os robustos Jet samba, de Marcos Valle, Aystelum, de Ed Motta, e Esquema novo, com Meirelles e os Copa 5.

Numa rara isonomia entre instrumental e canto, Ná Ozetti e André Mehmari fizeram de Piano e voz uma obra de degustação rara, como no canto falado de Ouvidos uni-vos, do mago Luiz Tatit, um dos pilares do grupo Rumo. Ainda no território do vocal elaborado, o Arranco de Varsóvia, em Na cadência do samba, conseguiu desencavar dois inéditos de Caymmi, cuja família reverenciou Tom Jobim num novo encontro das duas dinastias.

Para o samba e adjacências, aliás, o ano foi risonho. Minha flauta de prata escavou as relações de Benedito Lacerda com o sotaque fundador do Estácio. Da desconstrução de Tom Zé (Estudando o pagode) a memoráveis discos de Elton Medeiros (Bem que mereci), Moacyr Luz (Voz & violão), Zeca Pagodinho (À vera), Luiz Carlos da Vila (Um cantar à vontade), Germano Mathias (Tributo a Caco Velho), Péri (Samba passarinho), Nereu, Mocotó & Swing (Samba power), além do abrangente Timoneiro, que celebrou o múltiplo setentão Hermínio Bello de Carvalho.

Dois coletivos - Samba do trabalhador Renascença Clube e Roda de samba no Bip Bip - ainda reafirmaram a pujança do velho ritmo às vésperas dos 90 anos, comemoráveis nas imagens heráldicas de João da Baiana, Pixinguinha, Baden e Paulinho da Viola no DVD Saravah, do francês Pierre Barouh. Mais afeito ao samba canção, Vida noturna revelou um Aldir Blanc intérprete das profundezas da alma.

Igualmente notívago, mas em outra latitude, o iconoclasta Lobão expediu suas Canções na noite escura, num ano um tanto ralo para o pop/rock, com exceção do 4, do Los Hermanos, das Baladas do asfalto e outros blues, de Zeca Baleiro, do Futura, do Nação Zumbi, e do reflexivo Pré-pós tudo bossa band, de Zélia Duncan. Fronteiriços, Ana Carolina e Seu Jorge juntaram/rasgaram os trapinhos do pop com o samba cool no desencanado Ana & Jorge ao vivo.

Na seara de uma MPB cada vez mais híbrida, Chico Cesar associou-se ao Quinteto de Cordas da Paraíba, no quase camerístico De uns tempos para cá. Chico Pinheiro confirmou-se uma sólida assinatura autoral. Seu xará Chico Buarque, além de participação em vários discos alheios (incluindo a bela Desconstrução, da lusa Eugénia Melo e Castro), recapitulou a obra numa extensa série de TV transformada em DVDs. Suporte que também abrigou desempenhos menos ou mais eloqüentes de Elis Regina (em dois títulos), Maria Bethânia (também em filme), Gal Costa, Carlos Lyra (outro nas telonas), Tim Maia e o fenômeno Adriana Partimpim, heterônimo infantil, mas nada tatibitati, da Calcanhotto.

Jards Macalé rebobinou sua faiscante parceria com Waly Salomão (Real Grandeza) e duas novas cantoras (entre tantas) destacaram-se. Roberta Sá (Braseiro), mais chegada ao samba, e Céu, plugada na eletrônica, que cada vez corre mais nas veias de uma MPB (re)programada. Da Terra em trânsito de Moisés Santana ao Método tufo de experiências do Cidadão Instigado, o Procedimento, do Bojo, e Pra fazer o mundo girar, do Sonic Junior, além do RAPB de Rapin' Hood (Sujeito homem).

Por outro lado, os grotões acústicos do país emergem de projetos como o Reinado do Rosário de Itapecirica, capturado pelo violeiro Roberto Corrêa, enquanto o chorão Carlos Henrique Machado mapeava o rico veio sonoro do Vale do Paraíba em Vale dos tambores e o Itaú Cultural disparava nove CDs de seu projeto Rumos. São pepitas garimpadas nas margens de uma indústria desconectada a ponto de excluir até mesmo o hipertrofiado Mercadão de sucessos, CD coletânea amealhado nas periferias urbanas pelo quadro Brasil total, de Regina Casé, no Fantástico.

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