Revista Modern Drummer
Na trilha da espontaneidade
por:
Pedro Rosas
fotos: Eni Cunha

Novembro 2006

"Intuir musicalmente para mim é trilhar no espaço-som, num caminho em que o fio melódico se encontre com desenhos, com formas já conhecidas e formas abstratas." Foi com essa frase, típica de um musicólogo moderno francês, que Arimar do Espírito Santo abriu sua entrevista para a MD. Não é para menos. Sabemos que, sob a força máxima da intuição, gravitam os maiores artistas de nossa história. Ser espontâneo é ser único. Talvez por isso as obras de Arismar permaneçam vivas, e esse multinstrumentista e compositor seja reconhecido por suas harmonias inusitadas e por sua excentricidade criativa.
Nos seus mais de 30 anos de carreira, Arismar já ganhou uma infinidade de prêmios, organizou workshops dentro e fora do país, participou de várias turnês internacionais, assinou e dirigiu uma penca de projetos dentro do Brasil e, hoje, coordena cursos de Contrabaixo, Criação Musical e Prática de Conjunto na Dinamarca e nos EUA. Seria impossível mensurar o currículo desse Santo peregrino - fluente em contrabaixo, guitarra, violão, piano e bateria - que topou com muitos mestres em seu caminho: Hermeto Pascoal, Toninho Horta, César Camargo Mariano, Raul de Souza, Hélio Delmiro, Dominguinhos, Dory Caymmi, Heraldo do Monte, Lenine, João Donato, Leny Andrade, Paulo Moura, Naná Vasconcelos, Roberto Menescal, Nat Reeves, George Benson, e muitos outros.

Eleito pela revista Guitar Player, em 1998, como um dos dez melhores guitarristas / violonistas do Brasil, Arismar encerra o ano com mais três novos trabalhos: os discos Glow (Emi), em parceria com Jane Duboc e Vinicius Dorin. América (Lua Discos) com o pianista porto-riquenho Edsel Gomes e, por fim, seu trabalho solo Foto do Satélite (Maritaca), contando com a participação dos bateristas Alex Buck, Edu Ribeiro e do próprio Arismar do Espírito Santo. "Toco bateria como um baixista, baixo como um guitarrista e piano como se fosse uma orquestra com várias vozes costurando a música."
Foto do Satélite trás 16 composições, todas assinadas por Arismar, e revela a exultação do toque malicioso, depurado, típico da música instrumental brasileira - mesmo em diálogos com arranjos mais densos e melancólicos - além de uma mistura surpreendente de ritmos, como ele mesmo define: "Miscelânea, miscigenação, visões sérias, viagens ao cerne da música, prática de ritmos, sonoridades, encontro de timbres que compõem um quadro em que a música está acima das técnicas, tendências, ou que fique largada ao jeito mais humano de se criar sons". Para alcançar a sua odisséia polirrítmica - flertando com o samba, o baião, o xote, o jazz, a salsa -, o disco reúne figuras importantes da MPB, como Thiago Espirito Santo (filho de Arismar e produtor do disco), Michel Leme, Pepe Rodrigues, Bia Góes, Léa Freire, Dominguinhos, Vinicius Dorin, Silvia Góes e Proveta. "Só craques! Formação do time dos sonhos. É o time mais lindo de se fazer música. É só chegar e tocar!", comemora o comandante.
Em "Vestido Longo", música que abre o disco, Arismar traz uma configuração sutil entre samba e jazz - talvez forçando um casamento entre Paulo Moura e Dave Brubeck. Em "Brincadeira de Criança", arranca suspiros de lirismo da voz de Jane Duboc. Em "Mana" Arismar senta ao piano, bate palmas, canta, jorra sincopas para dentro de seu universo de inventividades. Seguramente, Foto do Satélite saiu do forno para alimentar sua sina de experimentador. Arismar está, a todo momento, se dedicando à reconstrução da música e à reinvenção de si mesmo.

MD: O que a intuição e a espontaneidade representam para você, na hora de compor?
Arismar: Intuir musicalmente para mim é trilhar no espaço-som, num caminho em que a música seja condutora, em que o fio melódico se encontre com desenhos, com formas já conhecidas e formas abstratas. Creio que um músico deva viajar por caminhos novos, arriscar mais que o conhecimento e a técnica lhe permitem. Tudo isso sem perder a ingenuidade da palavra "intuir" quanto à espontaneidade para compor. Não existe fórmula para isso. Existe a prática da primeira idéia. Primeiro você toca, depois põe os nomes. No caso de um tema composto por muitos ritmos, uso mais a intenção das divisões e dos acentos. Só que já imagino em que peça da bateria estou tocando. É como dizia o mestre Toninho Pinheiro, batendo a baqueta na cabeça: "Tá tudo aqui dentro". Desse modo, se for uma composição mais calma, os timbres são mais doces. Com baquetas de feutro ou vassouras, sempre imagino um contraponto, como se os tambores fossem um imenso piano de cauda inteira. Para mim, o ato de compor está muito ligado ao estado de espírito. Também tenho uma receita que é juntar elementos de vários instrumentos em um só pensamento. Toco piano como um baterista, bateria como um baixista, baixo como um guitarrista e piano como se fosse uma orquestra com várias vozes costurando a música.

MD: Quando você começou a tocar bateria?
Arismar: Comecei a tocar bateria em Santos. Aos 17 anos. Tinha uma Pingüim com bumbo 20", surdo de16", um tom de 13" e caixa de madeira de 14". Aprendi tocando junto com meus discos: Som 3 (Toninho Pinheiro), Oscar Peterson Trio (Ed Thigpen). Quincy Jones (grade Tate) e outros LPs de trios (Tamba Trio, Zimbo Trio, Airto Moreira). Estudei pra caramba! Estudava seis horas por dia. Em 1974, eu morava em Santos e tocava em São Paulo, na Baiúca, a maior responsabilidade, pois revezava com Zinho (José Daloya), um grande baterista: Wilson Bucetto, o rei do "time"; e, com o Nenê, que na época tocava com o Hermeto. Nenê sempre tocou diferente, vassoura com caxixi, e aquilo era impressionante. Todo dia eu voltava para casa com mais assunto a tratar com a bateria. Até hoje tenho uma relação de paixão harmônica com a bateria. Sempre me sinto inspirado para gravar com ela. Já tenho cinco temas compostos para um futuro trabalho como baterista. Aguardem!

MD: Qual o diferencial que seu disco, Foto do Satélite, trouxe para sua carreira?
Arismar: Foto do Satélite trouxe um compositor que compõe com mais fluência, temas com um fio melódico do começo ao final de CD, como se fosse a trilha de um filme. O baixista-compositor fez uma visita ao guitarrista que gosta de acompanhar, e este foi conhecer a cabeça musical de um baterista que toca sempre ouvindo uma orquestra que timbre com os instrumentos de percussão. Toco bateria como um pianista que apóia e fere acordes que causam movimento. Esse movimento é o fio melódico.

MD: Foto do Satélite também apresenta uma miscelânea surpreendente de temas e ritmos.
Arismar: Miscelânea, miscigenação, visões sérias, viagens ao cerne da música, prática de ritmos, sonoridades, sangue latino e amor à arte. Tudo isso faz parte, desde que a mistura de tintas aconteça com fluência. Defino essa mistura como um encontro de timbres que compõem um único quadro. Em que a música está acima das técnicas, tendências, ou que fique largada ao jeito mais humano de se criar sons. O mais importante é fazer, reunir, criar, e acreditar na nossa músico-cultura.

MD: Como foi a preparação para esse trabalho: os ensaios e a seleção do time para o disco?
Arismar: Quanto aos ensaios, a maioria foi na hora mesmo. O CD foi produzido por Thiago Espirito Santo, que já conhecia os temas, as instrumentista, já havia tocado ao lado de todos os convidados. Daí ficou fácil. Chegávamos ao Nosso Estúdio às três da tarde e já estava tudo pronto: microfones, piano afinado, as formações do dia já muito bem planejadas, partituras, fones, etc. Quanto à seleção, foi muito fácil escolher esse time! Só craques! Formação do time dos sonhos, É o time mais lindo de se fazer música. É só chegar e tocar! Esse povo gosta muito de tocar e fazer música!

MD: Na música, "Tidinho", você ataca bateria e piano com uma dicção muito particular.
Arismar: Essa faixa traz um samba que denominei "samba santista". Um tema que dá liberdade de improvisar, tocar com "dez". Para o batera é um paraíso, tocando com músicos que praticam esse tipo de linguagem. Soar, tocar na pressão, curtir os timbres. E nessa faixa toquei primeiro bateria, depois botei o piano, no dia seguinte. Parecia um tema que nunca havia tocado.

MD: No disco há seis faixas gravadas em um só take. Você é atraído por essa idéia de registrar a inspiração e o momento?
Arismar: Na primeira idéia você é sincero, na segunda você está em dúvida e daí pra frente é outra música, outros andamentos, outros solos. Sem contar que existe um sério risco de você ter que alugar uma caçamba para colocar todas as notas jogadas fora [risos]. Me atrai muito registrar a inspiração e o momento. Funciona como uma conversa, uma boa prosa em que a música nos traz a linguagem da inspiração como figura de linguagem e os sons nos brindam com a transpiração física e psíquica. Em Foto do Satélite, gravamos sempre três ou quatro takes e depois escolhemos o "bom". A escolha é democrática. Mas muitas foram de "prima": a faixa "Mana", por exemplo, gravei no Estúdio Cachuera, num tremendo piano Yamaha 3/4 durante 45 minutos e depois escolhi o trecho mais interessante. "Foto do Satélite" também foi de prima. A Bia passou lá no estúdio do Lotito e quebrou tudo. Fizemos um duo, voz e violão de sete cordas. Um mês depois, coloquei um baixo sem traste. "Terça às Treze" foi dinamite com dinâmica, também de prima.

MD: Qual a receita para um verdadeiro multinstrumentista? Capacidade ou dedicação?
Arismar: Tenho uma rotina diária de tocar. Levanto cedo, entre sete e oito da manhã, desço a escada de casa e simplesmente toco. Ou piano, ou violão de sete cordas, ou guitarra, ou tambor de língua, ou bateria. Como a bateria em casa fica na garagem, às vezes estudo caixa e bumbo com vassouras ou somente chimbal, caixa e bumbo.

MD: Como você vê o cenário da música instrumental brasileira hoje? Há espaço para novos talentos ou está todo mundo mais concentrados em trabalhos comerciais?
Arismar: O cenário é muito bom e criativo. Existem vários projetos de música. Existe também melhor preparo dos artistas que estão fazendo música pura e simples, sem a preocupação de mostrar técnica, virtuosismo. É uma geração chegando para fazer música brasileira sem preconceito. Vivo de música desde 1974 e tenho certeza de uma coisa. A música brasileira atual é a mais criativa e sonora de todas, sem a triste picha de estilos, modismos, nomes esquisitos, groovies, levadas, licks. Hoje estão se desenvolvendo os pequenos nichos que achatavam a criação musical e que tinham o poder de escolher o que era ou não música comercial - uma viagem furada de alguns poucos que não ouvem, nem viajam com as música. O passaporte musical deles está vencido faz tempo, mas isso é coisa de um passado distante, que não conhecia as atuais pré-produções feitas por músicos profissionais que têm competência, gosto e visão. Quem escolhe o que é ou não comercial é o público. Graças à internet e às novas tecnologias, aumentou o poder de escolha. Resta ao artista fazer música.

Tocando com Arismar
"O artista é um dos maiores compositores da história da música brasileira e um multinstrumentista de verdade! Fonte inesgotável de idéias harmônicas, melódicas e rítmicas, a convivência com ele é um aprendizado constante. Tive a oportunidade de gravar esse disco e de tocar várias vezes com ele, e é sempre surpreendente. Ele é capaz de tocar a mesma música mil vezes sempre de forma diferente. Isso estimula o músico que toca com ele a mudar e criar uma nova situação para aquela música também." Alex Buck

"Poucas pessoas passam tantas vezes pela fila da musicalidade como Arismar. Ele é um criador nato. Ao ouvir ele toca qualquer instrumento, sempre tenho a sensação de surpresa. Ele nunca me remete a um ou outro músico. Ele é muito singular, desde sua música até a maneira como nos recebe na sua casa, na cozinha, cuida dos cachorros ou leva os filhos à escola. Tudo tem muito humor, leveza e generosidade. Conviver, conhecer e, conseqüentemente, tocar e gravar com ele é uma das coisas que me fazem mais feliz por ter escolhido a profissão de músico. Muito obrigado Arismar!" Edu Ribeiro

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