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Paulo Flores

Por: Mariana Sayad e João Marcondes
Abril 2007

Um guerreiro da música instrumental

Paulo Flores é compositor, arranjador, professor e flautista. Em cada uma destas funções, ele se envolve de maneira intensa. Atualmente, Flores está terminando o projeto “Benê, o flautista”, que consiste no resgate da obra do flautista Benedito Lacerda. Este projeto é de suma importância para a música brasileira popular, pois o Benedito tem uma obra enorme, mas muito pouco explorada. Este projeto é só mais uma luta para este guerreiro, que tem como uma de suas metas aumentar o acesso à música instrumental brasileira. Aliás, mais do que isso, democratizar e facilitar o aprendizado desta música.

Paulo acredita no potencial criador dos jovens, por isso é muito respeitado lá no Conservatório de Tatuí, onde dá aula. A nossa entrevista aconteceu lá no conservatório mesmo durante o V Festival Brasil Instrumental no dia 18 de fevereiro de 2005. Confiram agora, alguns trechos da nossa entrevista.

Mariana Sayad


Nome Completo: Paulo Eduardo Flores da Silva
Data e local de Nascimento: 06 de dezembro de 1954 – 8:32 minutos da manhã, chovia, em São Paulo. Único Paulista. Meu avô é de Ribeirão Preto, a casa da minha família é tudo de lá. Eu nasci na Capital lá no Ipiranga.

Vozes da Música Instrumental
Você mora em Tatuí há quanto tempo?


Paulo Flores
Eu vim dar aula aqui em 1981 e em 84 mudei para cá, que achei legal. Filho pequeno, então saí de São Paulo para ter mais tranqüilidade. Em São Paulo, há muita dificuldade de viver e tudo é muito difícil: você vai trabalhar, vai dar aula numa escola, a outra fica em outro lugar. É tudo assim... Longe. É tudo complicado, é uma chance de fixar um pouco, viver num lugar só e com uma vida melhor. Família com uma vida melhor.

VMI - Fale um pouco sobre sua formação musical.

PF - Eu comecei a estudar música meio tarde. Eu toco desde moleque violão. Eu tive um caminho um pouco diferenciado. Minha irmã estudava violão e uma outra que estudava piano. São três irmãs: duas meninas mais velhas. A minha mãe tocava muito bem, minha avó, mas eu não peguei muito isso.

Petrópolis era uma cidade rica nesse negócio de música. O meu pai foi parceiro do Guerra Peixe. Ele não tocava absolutamente nada, mas escrevia. Eles faziam parceria e vendiam as músicas. Anos 30 tal. Era comum meu pai me chamar: “Vem aqui vem ouvir essa aqui!”. Canção com letra e tal. Os cantores da época compravam.

A minha avó tocava piano muito bem, minha tia tocava violino, outra acordeom, mas eu era muito criança e não peguei isso, nem participava. A minha mãe não acreditava nos filhos tocando e nunca me deu bola. Eu fui meio na marra. Tinha um violão, comecei a cutucá-lo e a compor. O meu negócio sempre foi por aí. Eu nunca quis tocar nada.

Eu não me inspirei em ninguém, eu achava que ia fazer a mesma coisa que os outros, então eu ficava procurando idéias. Eu só fui estudar música depois, aos 19 anos, por aí, descobri que esse era meu barato. Eu optei em ser músico, queria escrever, fazer essas coisas. Na época, eu era programador de computador, que coisa interessante... Isso deve ter sido em 1974. Eu fiz vestibular, entrei na faculdade de música, estudei composição, regência. Lá estudei flauta, piano...

Na época, era Paulista de Música. Hoje é FAAM? Ou virou FIAM, FAFAM... Um monte de coisa lá. É uma bobagem. Eu sou totalmente contrário às faculdades de música. Nós formamos muito mais músico aqui no conservatório. O pessoal chega lá não toca. Uma coisa é a formação. Essa coisa de tocar um instrumento é um negócio técnico. Criança aprende muito mais fácil do que adulto. É um processo e tem um nome bacana, que não vou lembrar agora. Uma relação de memória física. Quanto mais tempo você faz aquilo realmente se integra a você e faz parte você tocar. Tocar é como andar de bicicleta. Quanto antes se começar, mais os neurônios, as sinapses vão se juntando e criando situações de resposta. Quanto mais cedo melhor, isso em música é indiscutível para ser um instrumentista. É aquela coisa, o cara aprende com facilidade aquela coisa mecanicista. É como esporte. Um estudo mecânico. Você joga tênis. Pega um cara que vai aprender a jogar tênis velho, é sempre uma coisa monstruosa, feia, esquisita, o movimento é estranho e meio torto. A criança pega aquilo com facilidade. É como tocar.

Em compensação o desenvolvimento intelectual é feito mais tarde, tinha que ser trocado isso. Eu já tentei uma coisa junto a UNICAMP de fazer essa junção, da gente ter esse papel aqui de iniciar. Tem uma molecada que toca muito, mas ficam todos assim, com uma certa falta de informação. Depois disso, você já resolveu o problema de tocar, já tem técnica, o diabo que seja, então a partir de agora vai cuidar da cabeça, porque não adianta ter isso e não ter uma coisa por trás para poder falar. Vai acabar sendo datilógrafo, falar o que os outros falam. Bom pra nós, que somos compositores ter gente para tocar as nossas coisas. Maravilha. Sempre é maravilhoso.

VMI - Quais são suas principais influências?

PF - Eu não sou instrumentista, nunca me dediquei a ser instrumentista. Tem uma brecha grande nisso. Eu não tenho uma preocupação de estudar para tocar. Minha preocupação é criar mesmo. Eu sempre tive essa relação. Como eu nunca toquei coisas dos outros, esse negócio de influência é complicado. Não houve mecanização de algum assunto para ter influência. O meu trabalho não tem muita influência. Acaba sendo direta, aquela coisa que você vê e fala assim: “Oh, parece o som de quem sei lá” não parece. Villa-Lobos de um lado, Hermeto Paschoal do outro. Não é. Eu nem ouvia muito Hermeto. Eu tenho assim da minha juventude, eu ouvia muita música americana. Eu sou de uma geração, em que o pessoal lavou a alma da gente. Quando comecei a me interessar por esse tipo de coisa era rock ‘n' roll. Eu não cheguei a fazer tatuagem, nada disso, mas era a coisa do rock. Eu não gostava do rock, gostava dos Beatles, mais do que os Rollings Stones. O trabalho dos Beatles era muito melhor. Tinha um arranjador por trás, aquilo era elaborado, bem dosadas, camerístico de arranjo. Era um negócio bonito por trás, que era bom ouvi isso e me atraia. Não me importava o estilo.

Eu ouvia jazz e não gostava de blues, era muito chato e acho muito chato até hoje, porque é a mesma coisa o tempo todo, aquela cadência. É bom para quem toca, que fica horas fazendo isso. O cara que me pegou na música brasileira foi o Milton Nascimento, naqueles anos lá de 1968. Aquilo pegou para mim e senti firmeza. Comecei a ouvir música brasileira a partir daí. Ouvia e gostava mais. Nem era muito instrumental.

Eu tive uma formação erudita a partir de um tempo. Na hora que fui estudar música, fui estudar erudita, porque achei que a música de verdade para quem quer estudar, compor, mexer com instrumentação e orquestração é o caminho, você vai por ali. Mas infelizmente no Brasil é tudo muito ruim, no ponto de vista de educação, formação é muito ruim, o preconceito é muito grande, então, você acaba perdendo muito tempo. Eu fui para faculdade acreditando que iria fazer um trabalho, que era o meu sonho: estudar composição, instrumentação, orquestração para fazer aquela coisa bonita da música popular com orquestra, como Radamés Gnatalli. Esse caminho para poder estudar, mas eu nunca tive acesso a isso e só conheci Gnatalli depois. Na faculdade, os caras eram eruditos e preconceituosos. Então, a formação era velha, numa concepção antiga e ruim. Os professores quebravam o galho mais ou menos e acabavam dando aula de um monte de coisa. Um país pobre que tem uma estrutura pobre, nós sabemos disso. Lá dentro eu comecei a ter essa coisa. Por um lado fiz um tempo na escola do Zimbo, comecei a estudar piano lá, onde aprendi essa coisa de harmonia popular. Eles tinham recém trazido dos Estados Unidos o método da Berklee, aprendi e foi muito bom. Meu instrumento de composição é o piano. É com ele que vou desenvolvendo as coisas.

Eu fui tocar flauta só na faculdade. Eu precisava fazer um instrumento complementar e como eu fazia piano também já, eu não ia fazer o mesmo. Eu já fazia piano erudito um pouco, violão não tinha, podia até fazer um violão complementar, que achava bacana, gostava de tocar. Mas peguei a flauta. Tinha um cara lá que dava aula de flauta, comecei a fazer e terminei, já que estava fazendo, estudei e me formei em flauta também. Nunca foi meu barato não. Era mais essa relação. Eu achava que tinha aquela coisa assim para meu conhecimento, para poder escrever eu precisava tocar algumas coisas. Era piano, violão que já tocava, instrumento de corda, toquei viola um tempo e instrumento de sopro. Toquei sax um tempo, sax tenor, mas era aquele negócio, instrumentista é um negócio sério. O cara tem que se dedicar aquilo, nascer pra coisa mesmo e ficar malhando aquele troço. Nunca tive saco e nem tenho até hoje. Estudo para tocar aquilo, que preciso para fazer parte de um conjunto de um grupo, é mais essa dinâmica. Não tenho essa coisa de ser o solista ou não sei o que. Não dá tempo disso. Eu gosto de escrever, acho mais bacana.

VMI - Como veio a idéia de montar o departamento de música popular no conservatório de Tatuí?

PF - Isso não tem nada a ver comigo. Tem a ver em parte, uma época. Eu vim para Tatuí em 1981. Era uma escola essencialmente erudita. E eu vim dar aula de flauta erudita. Flauta doce e transversal. Aqui tinha na época, ícones da flauta, Carrasqueira dava aula. Flautistas excelentes e a molecada tocando. Mas muito aluno, escola virada para isso. Depois houve uma modificação, uma certa revolução interna, que acabamos mudando o diretor da escola e trouxemos o Koellreuter para ser o diretor. Nós achamos que iríamos criar uma grande escola. Nós queríamos dividir em três níveis de trabalho. A primeira parte da escola, que seria a parte maior, atenderia aquilo que ele chamava de departamento lúdico, formador de ouvintes, por assim dizer. O cara participa do som, aprende música, mas não vai ser músico. O outro núcleo seria do profissionalizante para quem ia ser músico, onde teria que ser o forte, ali seria pesado para o cara cair na vida e saber se comportar como músico erudito. E o outro, que seria de formação básica, de iniciação musical e esse é importantíssimo, que é o que caminha para os dois lados. Você tem lá em cima o músico profissional, amador ou ouvinte, seja o que for. E a base está aqui, na criança, que vai a formação básica e vai se definir para algum lugar.

O Koellreuter tem uma cabeça muito boa, essa visão bacana assim para um alemão não é um cara cartesiano. Então, isso é um negócio divertido, ele sempre dizia: “Acho absurdo fazer essa coisa, primeiro estraga e depois você pede para esquecer”. Primeiro você faz aquela formação. Você forma a criança, deforma a criança, dá uma de Pavlov. Você começa a fazer condicionamento em cima dela e depois, que está condicionada, você fala, crie, solte seu interior, energia... É um absurdo! O caminho certo é exatamente o outro. Você aprender com ela. Ela tem uma liberdade, que você não sabe de onde vem. Você não sabe o que é essa liberdade da criança, que mundo ela está vivendo. Será que é esse mundo material? Será que essa fantasia existe de alguma forma? Nós esquecemos depois de adulto, mas a criança tem. Então, era essa a estrutura, que pensávamos em fazer. Hoje, escola está querendo fazer, que é o óbvio, se não fica uma escola inchada. De repente, se está dando a mesma atenção para uma pessoa, que quer se profissionalizar e uma outra que não quer nada. Então, pode-se direcionar, fazer teste para pessoa entrar e mais um monte de coisas.

VMI - Como é o projeto “Benê, o flautista”?

PF - Esse projeto nasceu da cabeça da minha aluna. A parte primeira que veio de umas gravações antigas do Benedito Lacerda tocando com o Pixinguinha na Rádio Tupi. Aquele negócio, ela trouxe pra mim porque eu tinha feito o projeto para Petrobrás de uma outra coisa. Então, comecei a conversar, a ver mais e fiquei muito animado com aquela relação de choro. Um jeito bacana, que eles tocavam choro. Não é isso, que o pessoal faz hoje. Uma parte das pessoas toca choro como música erudita, é chato, cansativo e não tem a energia, que o pessoal tinha de fazer a coisa improvisada, solto na brincadeira.

Foi uma coisa de resgatar isso. No começo, era só pegar esse programa gravado na Rádio Tupi. São os acetatos de 38 rotações, que estão na mão de um acervo, que chama-se Collectors Studio. É um cara que tem muita coisa registrada e é muito bom. Entra lá, muito bom: www.collectors.com.br. O cara tem registro de coisas loucas, matérias de jornal... O cara tem mais coisa que o MIS. Fiz contato com ele, conversei e comecei a me animar com essa história.

Comecei a ver um monte de caminho, que podia levar isso. A coisa andou tanto pra tantos lados. A coisa foi mudando, aí mandei para a Petrobrás um projeto de fazer quatro CDs com a recuperação desse período, do Benedito Lacerda, mostrando o trabalho dele como compositor e acompanhante. Na verdade, o que era bacana, era o regional dele, que acompanhava todo mundo e essa relação dele tocando sempre. Ouvindo a flauta atrás de um monte de nomes conhecidos. O cara cantando e ele tocando flauta e fazendo contraponto. Lá, os caras toparam fazer o projeto. Já mudou e virou uma coleção de três volumes, porque na hora de meter a mão na massa para ver o que estava acontecendo, o trabalho do cara é muito mais denso, são quase 700 músicas, aí foi barra tentar achar isso.

Nesse ínterim, teve um caso fantástico. Onde eu moro aqui em Tatuí, aconteceu um caso de fazer uma guerra ecológica e um dos caras que estava brigando do nosso lado com o pessoal que queria cortar as árvores, é o diretor IMS (Instituto Moreira Salles), que é meu vizinho. Nós acabamos nos conhecendo e, por isso, acabei conhecendo o acervo e a IMS, que está dando apoio agora. Vou pegar agora essa coisa, que está digitalizada, tem um acervo do José Ramos Tinhorão e do Humberto Franceschi. Digitalizar tudo isso e disponibilizar no site. Tive lá e conversei, agora estamos vendo como fazer isso de uma forma legal.

Descobri que está tudo desafinado e ficou todo mundo indignado comigo, mas está desafinado, o que posso fazer? Tudo fora do tom. Quando peguei esse negócio do site, comecei a ouvir, estava por acaso trabalhando com teclado e tinha uma música lá - não me lembro qual era - eu coloquei um acorde assim e percebi a música era em si bemol e estava em si maior. O Benedito tocando flauta de forma muito bonita, aquele com agudo, aquela leveza. Comecei a ver, que estava tudo, sempre meio tom acima e aí perguntei para o pessoal lá, como era essa história. E o pessoal disse que não podia ser, não sei que lá. A primeira parte do Franceschi foi feita no Rio de Janeiro, numa restauradora lá. Com essa história da desafinação, o pessoal me isolou, ninguém queria falar mais comigo e eu na minha. Continuei pesquisando e ouvindo as coisas, tudo que tinha lá. E tinha lá no site várias gravadoras e uma delas é uma tal de Brunswick. Foi um dos primeiros trabalhos que o Benedito fez, no final dos anos 20. Todos os discos da Brunswick estão bacana, tudo certinho. O problema é da gravadora, lógico. Na época, qual controle que se tinha? Isso começa a ser a coisa mecânica, antes era manual. A gravação era mecânica, ficava girando, que nem filme. Ali, eles faziam uma relação eletrônica, mas isso é uma confusão. Ela podia está girando mais lenta ou mais rápida. Tudo tinha um padrão. Na Odeon, por exemplo, tudo era desafinado igual. Um dia conversando com os caras lá. O projeto está nesse ponto, esperando o material, as gravações para poder fazer isso, afinar, colocar no tom. Vai ser dividida em três volumes. Tem aquele período cronológico. Tem os fonogramas e as gravações ao vivo. Tem a parte dividida, o Benedito Lacerda solista, flautista. Ele como músico acompanhando cantor, que é o maior material, que é o mais diversificado. Tem Orlando Silva e um monte de gente. Está misturado entre isso, ele como compositor, que não deu para dividir. E a outra parte, que é ele com Pixinguinha, que é um outro período, a partir de 1945, que ele começa a fazer a parceria com Pixinguinha aquelas músicas geniais. Vão ser três volumes, cada volume com quatro CDs. Vai ficar um trabalho bacana e afinadinho.

Depois vou dar continuidade a isso, pegando a parte instrumental do Benedito e Pixinguinha, pretendo fazer partitura. Entrar no projeto depois e ver se consigo fazer tudo com as partituras do regional. Tirar como os caras tocavam, para exatamente ter todo esse material. Por isso, essa minha preocupação com a parte de afinação. Uma é relação de partituras, a outra é resgate, você está restaurando alguma coisa, deixar fora de tom é um absurdo. Se a tecnologia da época era uma coisa, que rodava a meia boca, na hora, que você restaura - imagina se restaurar um quadro e mudar de cor. Vamos deixar rosa, que eu gosto mais. Não pode. Então, é necessário ter essa preocupação, que até hoje ninguém teve. Todas restaurações, que tem no mercado, estão desafinadas.

Tem um outro projeto que quero fazer, em cima desse também. Quando o cara do Rio (de Teresópolis) me mandou as gravações dos programas de rádio, eu vi os programas inteiros. É muito bom, genial. Tinha o regional do Benedito Lacerda, tinha o Grupo de Chorões e a Orquestra, que o Pixinguinha escrevia os arranjos. Então, todo programa tinha arranjo do Pixinguinha para orquestra. Separei uns 25 que pretendo fazer um novo projeto com a Banda Brasil Instrumental tocando Pixinguinha nessa formação. É coisa inédita, ninguém conhece... Não existe.

VMI - Como foi criado o Festival Brasil Instrumental e a Banda Brasil Instrumental?

PF - O Festival foi oba-oba. Nós resolvemos comemorar os 10 anos de curso de MPB com uma festa. Chamar o pessoal que tinha estudado, os alunos que passaram por aqui, pra tocar, fazer um oba-oba, festejar. Montamos um projetinho, arrumamos uma graninha. A escola acabou arrumando a graninha, pouquinha grana. Dava uns 30 mil, por aí, e nós viajamos. Sentamos com aquele negócio e o pessoal começou a discutir a falta de espaço. A estrutura que tínhamos era tão grande, essa coisa de escola, com teatro, salas de aula e equipamento, que de repente nós estávamos montando o Festival de Santa Cecília, porque dá tudo certo.

O primeiro festival teve um show ao meio-dia e o outro na seqüência. Não é como fazemos hoje. Eram três shows por dia, durante 10 dias, foram 30 shows e mais de 50 workshops e fizemos isso com 40 pau, nós cobramos a entrada. Aluno tinha desconto e os outros pagavam um pouco mais. Demos alojamento para o pessoal ficar tantos dias com toda essa estrutura. Conseguimos um patrocínio do Movimento. Nós fizemos um festival desse tamanho com 45 pau. Quanto os músicos ganharam? Nada! Banda Mantiqueira, Orquestra Popular de Câmara, Toninho Ferragutti. Todos estavam ganhando pouquinho. Nós falávamos com os caras e eles toparam. Virou uma coisa absurda e ninguém acreditava no que estava acontecendo. Foi uma surpresa. O que era para ser um oba-oba, virou um palanque, onde o discurso todo era o espaço da música instrumental, que não existia. Assim nasceu. Em 2000.

VMI - E a Banda Brasil Instrumental?

PF - Primeiro nasceu Santa Cecília aqui e o segundo ela não quis. Nós não queríamos perder. Falamos tanto que era o palanque da música instrumental, que queríamos fazer do jeito que fosse. Nós conversamos com o pessoal, que não tinha grana nenhuma. O pessoal queria vir de graça. O pessoal da Mantiqueira passava por aqui, parava e já tocava. O segundo acabou acontecendo um ano e meio depois com o dinheiro da Petrobrás. A Petrobrás deu uma verba e eu tinha montado o projeto para Lei Rouanet e foi aprovado na íntegra. Eles captaram lá e resolveram bancar. Beleza.

Nós tivemos como critério, chamar todas as pessoas, que participaram do primeiro, para receber o que não receberam no primeiro com uma estrutura melhor e mais algumas outras pessoas.

Nós tivemos alguns enxertos, como Hermeto Paschoal, César Camargo Mariano. O festival foi muito bacana.

VMI - Como são suas aulas no conservatório. Você dá aula de quê?

PF - Eu coordeno a parte de cursos. Dou aula de repertório. Eu diminui um pouco as aulas, pois já dei muita aula e é muito desgastante quando se faz muito. Eu cheguei a ter 30 desses grupos de repertório. Alguns dias em que eu começava às 8 e terminava às 22 horas dando aulas de repertório, inventando arranjo para o grupo e não sei o que lá. Cansa, desgasta e para o pessoal também é ruim. Eu estou querendo tirar isso, organizar a parte pedagógica. Está muito difícil trabalhar. Consegui juntar músico, unir, reunir, fazer um método que seja. Quando montei o site Brasil Instrumental (www.brasilinstrumental.com.br), era para ser o portal da música brasileira. Está vinculado ao curso, vinculado ao festival e a produção dos músicos é uma forma de se divulgar a música. É uma forma de você educar.

O que eu mais gostaria de fazer é descentralizar o curso. A coisa do TELEDUC. Você conhece o projeto TELEDUC? Projeto da UNICAMP - Educação a distância pela Internet. Eu queria montar o curso nesse patamar. Abrir essa relação para todos os lugares, que tem um pólo de música. Seja uma banda ou uma escola. Nós fazermos esse trajeto e assessorar. A meu ver se não faz um processo tão anti-cultural, como é vir para cá. Porque você vai disponibilizar uma forma de trabalho num meio cultural específico. Então, aquilo vai ficar lá. Os músicos estão lá, no meio da realidade deles e vão ter um suporte para que eles possam se desenvolver. Nós podíamos fazer tanta coisa, mas é difícil. Acho que ninguém é muito a fim de fazer nada.

VMI - Como foi a gravação do CD Rumo Norte?

PF - Eu estou velho, não me lembro mais. Foi legal esse negócio. Até que foi ágil, não demorou muito não.

VMI - Quais músicas? Todas suas? E os arranjos?

Flores - É tudo meu. Arranjo, música, tudo meu. Sou egoísta!

VMI - Como funciona seu processo criativo?

PF - Pseudo-intuitivo. Eu trabalho no computador direto. Teclado, computador e coloco no programa lá que eu gosto de usar, que é só Midi e tem um equipamento antigo também. Então, fica assim: a formação da banda, ou o que eu for fazer. Eu monto a formação ali, coloco os timbres, que é para ser e saio tocando. Então, eu vou montando. Eu tenho um processo criativo, que eu gosto mais.

As coisas mais bacanas, que eu fiz, foram para piano solo, eu curto mais. Na hora, que fiz as coisas para piano solo e instrumentei ficou muito bonito. Ficou mais sintético e o som mais coerente, depois abre e fica legal. Na hora em que se pensa em todos os instrumentos ao mesmo tempo, vai piano e vai pondo a música assim. Ela pode dispersar um pouco e rola uma ansiedade para dar trabalho pra todo mundo, entendeu? Nós vamos pegando e aprendendo. O bom disso é que tem o famoso feedback. É aquela ação com reação. Você vai tocando, vai ouvindo, vai fazendo e vai chegando. Você trabalha com o som que quiser. Se você trabalha com desconhecido, não pode tirar da sua cabeça no papel. Não pode por o desconhecido assim. O desconhecido, que se está montando é como o artista plástico, que vai moldando a forma, de acordo com o que ele está vendo. Você conhece algum pintor cego? Músico surdo, nós conhecemos. Mas o músico que ouve tem que aproveitar essa relação.

Antigamente, você precisaria para fazer uma coisa para orquestra, uma orquestra disponível na mão. Então, já aconteceu coisa assim. Teve um amigo meu, que me deu coisa para orquestra, tinha orquestra de corda aqui. Isso é acorde e eu quero ver como é que soa. Põe lá você vê. Tem alguma coisa técnica, tem um outro resultado. Nós temos essa interação hoje, trabalhar com o computador e não sei o que lá, a interação, nós vamos fazendo, ouvindo, elaborando e ajustando.

Antes, o cara fazia, ia escrevendo para os músicos ao vivo e também fazendo esse processo, que foi ficando inviável aos músicos de hoje. Ninguém tem orquestra à disposição ou banda. O cara tinha uma banda de coreto, como eu tenho aqui na escola os grupos que tem banda, que vão fazendo isso. Vão testando, brincando e colocando. Arrisco tudo o que eu quiser

VMI - Para você, o que o Ministério da Cultura podia fazer para a música instrumental?

PF - Qualquer Ministério. Eu tive uma reunião com o pessoal da FUNARTE e propus: vamos tentar e nos juntar. Nós temos uma força. Foi o que falei antes, vamos tentar montar essa coisa pela Internet, fazer escola em cada lugar. Eles têm um projeto que já faz alguma coisa parecida com isso. É um projeto de bandas. O Ministério da Cultura tem um projeto de bandas pelo país inteiro. Então, através disso nós podemos criar uma coisa dessas porque são pólos. Quando eles vieram falar de workshops, que eles chamam de Painel Musical. Eu falei isso: “não funciona”. Você pega um grupo de pessoas, manda o cara para o Acre e eles ficam lá uns dois ou três dias, fazem aquele negócio e vão embora. E o resto? A música não é uma coisa, que você faz em três dias. Eles podem fazer isso se juntar com outras pessoas. Quem faz escola entende de educação. Poderia dar mais verba para fazer muita coisa. Ser profissional também, deixar de ser cargo político. Certos cargos tem que ser profissionais. O cara pode ser concursado, mas trabalhar lá dentro. Muda o governo, mas a equipe fica. O pessoal que ficou quatro ou cinco anos desenvolvendo, plantando e aprendendo aprendeu num momento mais maduro. Tira porque a política tirou e aí despenca tudo de novo, começa do zero. Podiam fazer coisas assim. Naturalmente acontece. Crescer e deixar de ser criança.

VMI - O que você acha da nova geração de músicos?

PF - Ah, tem de tudo. Nós já conseguimos criar uma escola de música brasileira. Criou-se um espaço. Colocou um pessoal com energia para dar aula. Essa semana se pode ver tudo, que está acontecendo. Tem uma frase que eu falo sempre: “Cultura é como você pensar em bactéria. Ela tem que ter condição para crescer”. Se você tem o lugar e dá condição de crescer, não se mete, a coisa cresce. É permissividade. A cultura é uma relação de permissividade. É deixar acontecer. E isso nunca foi feito. Desde os projetos antigos de cultura, sempre foi de cima para baixo. Ela nunca respeitou as condições que existiam ali. Se existiam as bandas, os coretos, tinha que dar apoio para os caras fazerem esse tipo de música. O que eles têm que fazer aqui é uma cultura da música da região. Eles começaram a querer fazer uma relação de música erudita, impor essa coisa. O pessoal da região não quer tocar isso. Aqui é uma região do cururu, precisa dar força ao cururu, dar dinheiro aos caras. É isso, é a manifestação natural do momento, então, deixa acontecer. O que nós fazemos aqui é isso. Nós vivemos um momento muito Jabour aqui no conservatório? Vivemos. Eu estou satisfeito com isso? Não! Não por não gostar do Jabour, simplesmente por não gostar de uma única tendência. A tendência do momento é jazz? Eu prefiro que seja tendencioso para o Jabour do que para o jazz, pelo menos é a nossa cultura.

Você deixa esse espaço outras manifestações aparecem. Como o meu trabalho influenciou o pessoal, nessa coisa de ser maluco, o outro vem vai influenciar também, não diretamente na influência da personalidade. Influência de poder fazer, mexer com os materiais serem lúdicos. Você tem que tocar jazz, choro e bolero. Tudo está aí para isso. Você vai se adequando para aquilo, que acha mais interessante, ou seja, para contar sua história. Se não tiver nada para contar, não adianta. Vai repetir. Acho o que acontece é isso. As pessoas precisam ler mais e não ouvir mais música e nem estudar mais tempo. Elas precisam se inteirar numa relação de mundo para entender que tudo é uma coisa só. O processo de criação e o processo de vida são um só. Está vinculada à anima, aquilo que se tem dentro.

Eu acho também, que viver em função dê é melhor do que viver em função de si mesmo. A coisa do ego, o artista tem muito disso. Não tem jeito, negócio de ego não funciona. Ele isola. Você tem que ser sempre aglomerador. Eu luto muito para que as coisas aconteçam em função do todo. Quero mesmo que a coisa melhore, nessa relação de alma mesmo. Que as pessoas sejam felizes dentro disso. Tocar música com tesão e alegria. Se a cara de um é tocar seis milhões de notas, a cara do outro é tocar duas, que tudo isso viva dentro de uma alegria. Minha visão por ser escola.

VMI - Para você, qual é o futuro da música instrumental?

PF - Como Paulo Freire fala: “Festival de Música Instrumental não está preocupado com música instrumental, se está preocupado com a música”. É natural, se ela é cantada, tocada, se é o cururu... Tanto faz. Nós temos que estar preocupado com a relação com a sociedade. A música é uma expressão como qualquer outra.

A riqueza da cultura brasileira é um negócio fantástico. O brasileiro é fantástico há muito tempo. Mário de Andrade escreveu coisas, que são surrealismos e nunca teve valor de um Kafka ou de um Garcia Marques. Nunca teve. Nunca foi dado um espaço para ele nessa relação. O cara é maluquinho da silva, totalmente desparafusado. Monteiro Lobato é muito mais interessante, que o Disney e nunca foi dado o valor para ele. Villa-Lobos. Você encontra de tudo na cultura brasileira.

O futuro da musica instrumental vai ser muito grande, porque todo mundo vai querer ouvir. É o que acontece com o choro. Vai ser tocado. Volta a ser tocado. Eu acredito no choro daquele jeito assim. Tem vários jeitos. O jeito que Paulo Moura toca. O futuro será amplo.

Muito obrigada Paulo!

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