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Benedito Lacerda & Pixinguinha
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Flautista, compositor, arranjador, intérprete e produtor, Benedito Lacerda (1903/1958) fez muito pela música brasileira. Além de compor e interpretar clássicos do choro como "1 x 0", "A Jardineira" e "Isaura", encontrou tempo para criar a União Brasileira de Compositores (UBC) e a Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música (Sbacem), em defesa dos direitos autorais, anos após liderar o revolucionário Gente do Morro, ao lado de Bide, Henrique Brito e outras feras que trouxeram mesmo o morro abaixo, no sentido mercadológico. Ou será bíblico? Afinal, a ousada transferência trouxe o próprio samba para o choro, dando emprego a muito "malandro". E, a reboque, veio aquele regional com que Benedito se consagrou até sua morte, já em 1958, acompanhando os principais nomes da música brasileira do período, a tal Era do Rádio, em cerca de 800 gravações. Inclusive, seu regional - que só teria como páreo, já após a morte de Benê, o Época de Ouro, de Jacob do Bandolim - resgatou Pixinguinha, já nos anos 40, repartindo com ele "devidamente" os direitos de suas parcerias - embora muitos insistam no contrário. Ademais, conferir este projeto é também a chance de estar próximo de gravações históricas de outros gênios da música.
O projeto tem o nome de "Será o Benedito?!?", reunindo três caixas, cada uma com quatro CDs, em gravações comerciais e acetatos de registros inéditos, ao vivo -invariavelmente, no programa "Pessoal da Velha Guarda", conduzido por Almirante, há 60 anos. A idéia veio quando Corina Meyer, uma aluna do flautista Paulo Flores, trouxe-lhe umas fitas com registros ao vivo de Benedito, Pixinguinha e do Regional. "Fiquei extasiado ao ouvi-los, e começamos a pensar numa forma de mostrar a todos aquele jeito brejeiro de tocar choro com alegria e sem ranço", descreve no requintado libreto que acompanha a primeira caixa, disponibilizada no mercado: "Benê, o Flautista". Nele, uma sucinta "linha do tempo" nos situa no universo estético-histórico de Benedito entre um "Abenendário", léxico, com caricaturas e informações preciosas, de 65 contemporâneos do flautista; de Aldo Cabral a Zequinha Reis, passando por Canhoto, Dino 7 Cordas, Jacob do Bandolim, Mário Reis e, claro, Carmen Miranda e Pixinguinha. Entre eles, um direcionado ao próprio flautista. Isto tudo, além das letras e das fichas técnicas mínimas das gravações originais, de uma bibliografia e a ainda de mais textos apresentando os CDs. E de mais um defendendo Benê das acusações de que haveria se apropriado de motivos populares ("como Villa-Lobos, Jobim, Stravinsky etc") e dos direitos de Pixinguinha ("dividiriam os ganhos e glórias de tudo que fizessem juntos").
Chiadinho preservado
Parêntesis feito, retomemos o rumo da conversa. Para simplificar a coisa, Paulo montou um projeto para o Programa Petrobras Cultural, em 2004. O que a princípio seria um álbum com quatro CDs, acabou virando três volumes com quatro CDs cada um. Por isso mesmo, o projeto ganhou o subtítulo de "trilogia musical da obra do polêmico (e genial) Benedito Lacerda". Neste "Benê, o Flautista", o primeiro traz o grupo Gente do Morro tendo Benedito como solista e cantor; o segundo realça "Benê e Pixinga"; já o terceiro e o quarto álbuns apresentam gravações do Regional de Benedito acompanhando gente como Francisco Alves, Araci de Almeida, Carmen Miranda e Silvio Caldas, entre sambas, marchinhas, valsas e canções. As duas outras caixas serão lançadas até o ano que vem, nos 50 anos de ausência do músico.
Como a obra de Benedito consta não apenas das 800 gravações como acompanhante, mas com cerca de 700 composições e de 1000 gravações como um todo, muito trabalho estava por vir. Flores comparou o acervo de registros radiofônicos do pesquisador Ricardo Manzo, da Collectors Stúdio, e comparou com as gravações comerciais das coleções de Humberto Franchesci e José Ramos Tinhorão junto ao Instituto Moreira Salles, chegando à conclusão, através do engenheiro de som Homero Lotito (entrevistado no libreto), de que havia diferenças entre as rotações da gravação e da reprodução dos fonogramas originais em 78 RPM - ainda que já restaurados e digitalizados. "Cada gravadora tinha o seu pitch, provavelmente devido à ciclagem. A única afinada era a Brunswick. Mesmo as gravações ao vivo estavam fora de tom", comenta Flores. "Então, todas as músicas foram afinadas no padrão Lá = 440Hz, o que resultou numa diferença brutal no andamento e no timbre, principalmente das vozes dos cantores. Acreditamos que isso seja um fato inédito!", entusiasma-se, destacando ainda a sutileza no trabalho de limpeza de ruídos e chiados em favor da originalidade de algumas freqüências, em relação aos sons chapados dos projetos comerciais em vigor. Para a felicidade geral da memória musical brasileira.
Do morro ao regional
Com aquele áudio baixinho, às vezes rajado por uns charmosos chiadinhos, entre vozes e instrumentações misturadas pelos poucos recursos da época, os primeiros CDs do projeto "Será o Benedito?!?" reúnem 83 faixas. Todas com fichas técnicas e comentários sobre termos e conceitos da época. No primeiro, Benedito Lacerda é destacado como solista e cantor do grupo Gente do Morro, que apresentou a riqueza da música e da cultura do morro à "sociedade" carioca. No grupo, Benedito, Jacy Pereira e Henrique Brito (violões), Júlio dos Santos (cavaco), Bide e Gastão de Oliveira (tamborins), Juvenal Lopes (chocalho), Russo do Pandeiro e um pianista não identificado.
Benedito sola primeiro o seu "Gorgulho", de 1932. Há 30 anos, a música foi editada como a "Generoso", de Pixinguinha... Em seguida leva o divertido samba "Amor bandoleiro", de Bide. Entre as 18 composições, as beneditinas "Chora", "Isaura", "Orfandade", "A Nega Sumiu" (com Sílvio Caldas), "Pretensioso" (também creditada a Pixinguinha) e ainda "Como acabou meu amor", parceria com Gastão, e "Disca, minha nega", com Magalhães. A alegria, o lirismo, as referências à cultura carioca, a negra e a da "sociedade" que via chegar o telefone enquanto alimentava o "preconceito de cor", ainda comparecem em composições de Heitor dos Prazeres, Henrique Brito, Meira ("Minha flauta de prata", para Benedito) e outros.
Na seqüência, "Benê e Pixinga" traz 24 encontros entre os dois flautistas. Ou melhor, entre o flautista Benê e o Pixinguinha saxofonista, como melhor se adaptava às conseqüências da bebida, quando o amigo o chamou para fazer com ele "a dupla mais importante da história do choro e da MPB", em 34 gravações entre 46 e 50. Só que nem todas teriam o dedo - ou a embocadura - autoral de Benedito. Que, mesmo assim, firmou a parceria, algo contemporizado pelo pai do projeto: "Quem fez bem a quem" Se houve um acerto tio Lennon e McCartney, Roberto e Erasmo, qual o problema", inquire, chegando a sugerir ainda a legitimidade de algumas delas.
O que importa é que, entre registros de estúdio e entre as palmas e a locução cativante de Almirante em seu programa com o Pessoal da Velha Guarda, os choros atribuídos à dupla são maravilhosos: "1x0", "Cheguei", "Os Oito Batutas", "Segura ele", "Vou Vivendo", "Seu Lourenço no Vinho", "Urubatã", "Ingênuo", "Naquele Tempo", "Sofres porque queres"... Há, "só" de Pixinguinha, o "Cochichando", e ainda a polca (chiadíssima) "Atraente", de Chiquinha Gonzaga, o "Treme-Treme", de Jacob do Bandolim, o "Tico-Tico no Fubá", de Zequinha de Abreu. Tem ainda duas conversas "do barulho": uma atribuída ao domínio público, "Urubu Malandro", e a mais comportada "Língua de Preto", do pianista Honorino Lopes. "Temos que ser gratos a Benedito. Talvez sem ele, Pixinguinha tivesse ficado esquecido para sempre", enfatiza o pesquisador paulista.
Hora do acompanhamento
Ao terceiro e quarto álbuns, com o regional de Benedito Lacerda. Derivado das inovações do Gente do Morro, ele apresentou Canhoto no cavaco e nos violões de Ney Orestes e Lentine. A partir de 37, Dino 7 Cordas e Meira assumem esta função, com Popeye no pandeiro, depois substituído por Gilson de Freitas. Formação que também se derivava como Regional do Canhoto, Boêmios da Cidade e Regional de Luiz Americano. "Mas era na precisa mão de Benedito, com suas introduções e contrapontos, sua ginga, seu alto padrão de exigência, que essa dinastia mais brilhava. Benedito, com seu regional, dava o tom em todos os possíveis sentidos da palavra", considera Paulo Flores.
Assim, nas 21 composições do primeiro álbum, Benedito está entre vários parceiros e executa ainda canções, marchas e sambas de Leopoldo Fróes, Duque, Chiquinha Gonzaga, Sinval e Valfrido Silva, Silvio Caldas, Bide e Marçal... No "Pessoal da Velha Guarda" ou em estúdio, o flautista acompanha Almirante ("Ciganinha"), Francisco Alves ("Brinca, coração"), Mário Reis ("Eva querida"), Carmen Miranda ("Querido Adão") e ("Coração"), Sílvio Caldas ("Boneca"), Aracy de Almeida ("Tenho uma rival"), Moraes Neto ("Lua Branca"), Carlos Galhardo ("Apenas tu")...
Na maioria delas, o regional de Benedito conta com Pixinguinha (sax), Raul de Barros (bombardino) e um tal Grupo de Chorões. Já nas 20 faixas da segunda parte, ainda não anunciando a despedida que levaria ao regional as flautas de Altamiro Carrilho e depois a de Carlos Poyares, Benedito está diante de clássicos como "Chão de Estrelas" e "Arranha-Céu" (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa), entre parcerias do flautista com gente como Herivelto Martins, em "Samaritana", "Nem no sétimo dia", "Duas lágrimas" e "Um caboclo abandonado". Em todos esses acompanhamentos, Benedito sabe a hora de brilhar.