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- 12/10/2004
Música Instrumental Brasileira

Arismar do Espírito Santo
Por Fabio Silvestre Cardoso
Gravadora: Maritaca

No caderno “Telejornal” de O Estado de S. Paulo, a jornalista Leila Reis, escrevendo sobre a festa de videoclipes promovida pela MTV, faz uma precisa constatação sobre o atual espaço da música brasileira: não há lugar para a MPB na televisão. A afirmação ganha contornos mais sombrios quando se nota que em estado mais grave se encontra a música instrumental, relegada a uns poucos apreciadores e estudiosos que insistem em cultivar um gênero musical que há muito deixou de encabeçar a lista dos mais vendidos.

Decerto que o leitor pode pensar que há um exagero da parte deste colunista no que se refere aos “mais vendidos”. Ainda assim, sem sombra de dúvida, pode-se afirmar que a música instrumental já foi mais ouvida (e comentada) do que ela é hoje. Nadando contra a corrente, em uma época em que a regra é a música popular se render ao popularesco, o músico Arismar do Espírito Santo brinda os ouvintes com o álbum 10 anos – Arismar do Espírito Santo (Maritaca, 2004). Um disco que pode ser uma ótima introdução para quem não conhece essa faceta tradicional da música popular brasileira.

Mesclando standards e músicas originais, Arismar apresenta ao ouvinte um amplo cardápio para aproveitar o que há de melhor tanto na composição quanto na interpretação dos arranjos. Isto é, o músico não é apenas um grande executor de peças alheias, mas, sobretudo, um criador e improvisador das obras que executa. Dessa maneira, ele é capaz de transformar uma composição já batida em uma música com uma nova roupagem. Para que o leitor possa ter noção de como isso funciona é imprescindível que se faça uma análise das partes para chegar ao todo. Isso porque as 13 músicas do disco podem ser divididas em três partes, a saber: as composições originais de Arismar do Espírito Santo; as obras consagradas – que são a minoria, mas têm uma importância considerável –; e as peças que tiveram a colaboração ou participação especial de algum convidado. Esses três eixos possuem um elemento que os une, seja do ponto de vista técnico, seja do ponto de vista teórico, conforme veremos no final.

No que concerne ao primeiro grupo, cabe destacar “Neguinha”, que abre o disco. Com uma base formada por um conjunto forte de baixo, bateria e piano elétrico, destacam-se Heraldo Monte, nas guitarras, e Teco Cardoso, no picolo. Entretanto, os demais instrumentos fazem uma espécie de rodízio nos solos e nos improvisos, gerando um resultado com swing agitado. Em contraste, a faixa seguinte, “Fulô”, apesar do nome (que sugere agitação), possui um ritmo suave e cadenciado, sendo guiado pelo sax soprano de Vinícius Dorin. Já em “Seu Zezinho” emergem os ritmos tradicionais, ícones do regionalismo musical. O ouvinte percebe isso logo nos primeiros segundos: de um lado, triângulo, pandeiro, surdo e congas conversam com o outro, formado por sax tenor, sax barítono, violões e pianos. Aqui, a unidade é obtida pelo ritmo que dita o andamento e provoca as respostas dos instrumentos de sopro, por exemplo.

“Breve encontro” e “Velho Bahia” são duas peças curtas. Em ambos os casos, a síntese parece evocar uma reflexão em dois momentos diferentes do disco. “Breve encontro”, por exemplo, surge logo após a frenética “Seu Zezinho”. Como contraponto, este breve encontro traz apenas o violão e o baixo de Arismar e a voz grave de Edson Montenegro, numa espécie de murmúrio ou queixume arrastado. Em “Velho Bahia”, a percussão divide as atenções com a voz de Filó, que opta por um vocalize mais rítmico do que melódico. Na canção precedente, "Biabilô", é correto afirmar que os demais instrumentos são base para o acordeom de Dominguinhos, cujo improviso provoca resposta nos demais instrumentos, numa escala de efeitos colaterais sonoros. A certa altura, a execução em muito se assemelha com uma jam session de jazz.

No tocante as obras consagradas, tem-se as músicas “Lamentos”, de Pixinguinha e Vinícius de Moraes, e “Luz Negra”, de Nélson Cavaquinho e Amâncio Cardoso. Em “Lamentos”, por exemplo, nota-se o arranjo jazzístico desde os instrumentos. Piano, baixo e bateria tomam um o lugar do outro numa seqüência que, se no início é cadenciada e executada suavemente, logo soa vigorosa e pulsante com as passagens e as frases improvisadas de contrabaixo. Na faixa seguinte, “Luz Negra”, o ritmo convulso é quebrado numa releitura com a batida do samba. A introdução é feita com um vocalize de Arismar, acompanhado do violão e do tamborim ritmado.

Além das músicas próprias e das releituras, as composições em parceria e as colaborações de outros músicos são peças essenciais neste álbum. É o caso de “Carismando”, de Hermeto Pascoal. Com uma levada cool ao piano, em acordo com a bateria de Dudu Portes, Hermeto Pascoal conduz e abre deixas para os solos e improvisos de Arismar no contrabaixo. Na faixa seguinte, “Dos Dois”, o realce ora fica por conta de Naylor Azevedo (clarinete e clarone), ora por conta de Edsel Gomes, nos pianos. Contudo, perder-se-ia, e muito, se se resumisse a melhor música do álbum nesses highlights já que aqui se encontram todos os elementos do disco, tanto no improviso como nas passagens e na execução apurada de cada instrumentista.

Ao longo do disco, com toda a sua variedade sonora e instrumental, o ouvinte percebe que há um elemento que funciona peça elementar das 13 canções: o contrabaixo. A propósito, é curioso notar como o instrumento, que geralmente é relegado à base e ao acompanhamento, assume nesse álbum um papel diferente, como se fosse o único detalhe em comum em todas as peças. Com isso, os três eixos descritos nos parágrafos acima deixam de ser estranhos um ao outro e passam a ter uma unidade, graças ao instrumento. Da mesma maneira, é possível dizer que a música instrumental também ganha alento, graças a Arismar do Espírito Santo.

Para ir além...

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