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Coluna Música - Nenê
por: Felipe Ávila
20.04.2006
Nenê é um músico muito especial e completo. É arranjador, compositor, toca acordeão, piano, violão, percussão e é, também, um dos maiores baterista do mundo. Aos 19 anos participou do histórico "Quarteto Novo". Muitas viagens pelo mundo todo tocando com os melhores e mais variados artistas e músicos do planeta em shows e festivais de jazz.
Alguns dos artistas com quem Nenê já trabalhou: Aloísio Pontes, Pedrinho Mattar, Dick Farney, Luis Melo, Tenório Jr, Luis Carlos Vinhas, Elis Regina, Milton Nascimento, Charlie Haden, Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal.
Eu, particularmente, tive o prazer de tocar com o Nenê, num quarteto muito especial que montei para a festa de fim de ano da empresa de um grande amigo. O som foi muito bom e nos divertimos muito. Logo estaremos tocando juntos de novo.
Vamos conhecer um pouco da história deste grande músico.
1- Você é um músico com muitas histórias pra contar. Foram muitos shows inesquecíveis, com artistas variados e do mais alto nível de músicas e músicos. Na sua opinião, Nenê, tudo isso que você conquistou, viveu e continua vivendo, se deve somente ao fato de você ser um dos maiores bateristas do mundo?
Eu me considero um músico comum, mas, consciente das minhas qualidades e defeitos Ao longo da minha carreira e até o final da minha vida, buscarei aperfeiçomento, para contribuir com o melhor da minha música. Eu comecei tocando acordeão obrigado pelo meu pai (eu não tinha muito interesse). Mas, acabei tomando gosto e, hoje, agradeço a ele, pois acabou sendo de grande valia para compor e escrever arranjos. Em Porto Alegre, onde eu nasci, havia grandes bateristas, entre os quais, posso citar: Argos, Saraiva, Mutinho, Sumerval, Baraldo, Miltinho, Calcanhoto e, muitos outros; portanto, no início, ouvi muita bronca. Eu tentava dar uma canja e ouvia: vai para casa estudar bastante e, depois, volta aqui. Mas, ao invés de ficar deprimido, eu ficava com raiva e ia para casa, metia bronca no estudo e, desta maneira, fui melhorando. Uma das coisas que eu fazia era concorrer com o meu ídolo local eu estabelecia que tinha que tocar igual, ou melhor, do que ele. Isto me motivava muito. Também procurava tocar com músicos mais experientes e melhores do que eu. Era uma maneira de aprender e avançar, pois, quase não havia escolas de música naquele tempo só de música clássica ou de acordeão, que eram musicalmente muito frágeis.
Portanto, o fato de eu ter tocado e tocar com todos estes músicos fantásticos se deve ao meu esforço e aos meus ótimos amigos que me apoiaram e aos quais eu devo tudo o que sei.
2- Antes do sistema de ditadura ser imposto no Brasil, a música instrumental brasileira vivia um momento super-privilegiado em um mercado de trabalho muito aquecido. Como você sente hoje, num Brasil democrático, o mercado, as oportunidades e os espaços que temos pra tocar?
Eu comecei a tocar bateria dos quinze para os dezesseis anos no surgimento da Bossa-Nova. Antes disso, eu tocava acordeão e pude sentir a transformação que aconteceu na música brasileira. De repente, o Brasil se transformou, musicalmente, numa coisa maravilhosa. Você ligava o rádio e ouvia, Edíson Machado Trio, Leny Andrade, Milton Banana, os Cariocas, Tom, Tamba-trio... Na minha casa não tinha TV. Eu ouvia rádio o dia inteiro e, à noite, sintonizava a Rádio Nacional do Rio e ficava curtindo. Era o paraíso. Naquela época não havia o sistema de televisão via Embratel, que uniu o Brasil, mas, acabou com a arte regional. Antes da implementação deste sistema os artistas eram todos locais. Em Porto Alegre, nós tínhamos duas rádios grandes (Rádio Farroupilha e a Rádio Gaúcha) e várias outras menores (que até hoje existem). Pois bem, a Rádio Gaúcha e a Farroupilha possuíam, cada uma delas, o seu elenco de artistas. A Farroupilha tinha uma orquestra com cerca de 60 músicos, mais um conjunto regional que tocava choro e acompanhava cantores desta linha; além de um conjunto melódico formado por piano, contrabaixo, guitarra, acordeão, bateria e ritmista. Havia, ainda, um elenco de cantores e de atores para o rádio teatro. O mesmo acontecia com a Rádio Gaúcha, a não ser pela orquestra, que era menor uma Big Band. Essa estrutura dava emprego para os músicos. As TVs Farroupilha e Gaúcha também eram assim. Tínhamos uma infinidade de cabarés e cinemas, casas de chá e bailes todos, com música ao vivo e tudo com cachê. Portanto, era muito diferente de hoje. De qualquer forma, não me considero um saudosista. Devemos encarar a realidade e seguir em frente.
Com o golpe de estado, os que mais sofreram devido à violenta censura foram os letristas, poetas, escritores e músicos que transitavam nesta área. O músico comum sentiu mais a agressão física. Às vezes, estávamos no ponto dos músicos, na São João com a Ipiranga e chegavam os camburões para uma blitz. Sempre sobravam umas borrachadas para alguém, que acabava preso. Às vezes, um milico gritava para outro: Tem mais um com a carteirinha azul, aqui (carteira da Ordem dos Músicos). A ditadura apoiou e incentivou a mediocridade (a Jovem Guarda, por exemplo). Acho que nem era por mal eles eram totalmente alienados, tanto musicalmente como politicamente. Àquela época nós perdemos, também, o poder de opinar e gostar ou não de alguma coisa (não todos, felizmente). Começou-se a usar o termo eclético. O cara eclético gostava de tudo: Tom Jobim, Bruno e Marrone, Ravel, É o Tchan... sabe, cara, eu sou eclético! Por outro lado, também houve um lado positivo, com relação à criação artística tanto no teatro como na música instrumental e cantada.
Apesar do fim da ditadura, ainda restaram algumas coisas daquele período que eu nem preciso citar. Basta você ligar o rádio ou a TV, e você vai perceber que o mercado de trabalho definhou todo o trabalho noturno foi substituído por música mecânica, o músico ganha couvert artístico sendo que existem donos de bares que ainda pegam 30% do couvert. Não adianta você ter currículo internacional, ter gravado dezenas de CDs com uma música original e artística. Os produtores querem projetos com convidados famosos (segundo eles, para atrair mais público). Portanto, nesta roubocracia brasileira, as oportunidades estão menores, mas, os músicos estão muito melhores. Nós vamos sair desta ditadura de projetos e do tráfico de influência. E, eu sou muito otimista em relação a isto.
3- Conte uma história estranha ou engraçada que você presenciou em sua vida profissional.
Nós estávamos em turnê com o Egberto Gismonti, no ano de uma Copa do Mundo, creio que em 82. O Brasil tinha aquele time só de cobras: Sócrates, Zico, Valdir... Bem, nós chegamos à Padova, na Itália, para um concerto. O grupo estava super-ajustado. Chegamos um dia antes do jogo. Era um dia de folga. Quando nós chegamos no hotel, eu e mais o Zeca fomos tomar uma no bar do hotel e começamos a gozar os italianos: vocês não estão com nada, amanhã, vai ser 5 à 0 e, blá, blá, blá... blá, blá, blá... Um pouco mais tarde, o Egberto nos chamou no seu quarto para fazermos uma reunião. Fomos todos para lá. Quando chegamos, ele nos disse: Olha gente, eu estive pensando e decidi que nós devemos fazer um ensaio... Todos começaram a reclamar... pô cara, o grupo está super ensaiado... nós vamos ensaiar o quê? Ele pensou bem e disse: Ensaiar o free... mais o free a gente não ensaia... a gente sai tocando. É evidente que ele sabia disso, mas, era só para sacanear. Eu perguntei: E a que horas vai ser o ensaio, amanhã? As cinco e meia exatamente a hora do jogo... Sem essa cara, peço desculpas, mas, tô fora. Na realidade, era só para curtir com a nossa cara. No final, fomos todos assistir ao jogo... e nós perdemos. O Zeca e eu ficamos com zero... Ninguém queria descer para encarar os italianos, que, por sinal, deitaram e rolaram com a nossa cara. Esta derrota me perseguiu por anos, pois, eu já estava morando em Paris. Cada vez que eu ia a um restaurante italiano, o garçom vinha e, antes de qualquer coisa, num portunhol bem claro, perguntava: Brasiliano? E o Paolo Rossi... le gusta?
4- No ano de 1979 você fazia parte do grupo do Hermeto Pascoal - um grupo onde estavam juntos Itiberê, Nivaldo Ornelas, Cacau, Zabelê, Pernambuco, Jovino, você e o próprio Hermeto. Você também participou do show em Montreux - Jazz Festival que resultou na gravação de um belíssimo disco, disponível hoje em CD. Gostaria muito que você compartilhasse um pouco desta experiência e contasse sobre como foi trabalhar com um dos maiores músicos do mundo.
O disco, agora, CD, feito em Montreaux foi uma experiência incrível. O grupo estava super ensaiado. O Hermeto falou: vamos chegar lá e quebrar tudo, vamos atropelar os gringos. E, fomos embora. Nós fomos através da Warner Bros. O Mazola e o Liminha eram nossos roadies. Na primeira parte, havia a fantástica cantora Elis Regina, com seu quinteto, afinadíssimo. Depois de passarmos o som, ficamos aguardando o início do concerto. A Elis arrasou, acompanhada pelo ótimo grupo liderado pelo César Camargo Mariano (eu tinha feito parte do grupo, um tempo atrás). Entramos no palco, teatro lotado e, no primeiro número, que era curto, foi tudo bem. Mas, no segundo, a gente deu uma esfriada e o Hermeto ficou puto. Virou-se e começou a gritar: vai, caralho, puta-que-pariu, vamos lá! Isso foi um balde de água fria para nós. Daí para frente, a coisa rolou. Para nós, que éramos todos jovens, foi uma experiência única! Há uma coisa que eu queria esclarecer sobre o som que a Elis e o Hermeto fizeram juntos. No final, as pessoas falaram que o Hermeto começou a fazer harmonias e ritmos complicados para derrubar a Elis. Isto não tem nada a ver. Os dois fizeram um puta som criativo e sensível. A Elis era cantora de berço, com uma experiência muito grande e, sempre cantou com os melhores músicos da época. Ela cantava todo o tipo de música, pois, cantou muito tempo em bailes, assim como o Hermeto. Seria possível acreditar que essas duas pessoas entrariam num palco para tentar prejudicar um ao outro? Eu estava presente e posso dizer que foi uma coisa emocionante!
5- Sei que a Editio Princeps estará, ainda este ano, relançando em CD seus primeiros discos "Bugre" e "Minuano". Como é feita a distribuição e onde podemos encontrar para comprar os seus outros CD's? "Caminho novo" e "Ogã"?
Eu fiquei realmente muito contente com este relançamento. O Marcelo Bacha, que é o produtor, fez um trabalho de excelente qualidade, incluindo um encarte com fotos da época e textos extremamente esclarecedores, de como se passaram as coisas naquele período. A re-masterização feita pelo Lelo Nazário, também, pianista, compositor e arranjador, com quem eu tive o prazer de tocar durante alguns anos, ficou ótima. Acho que os SESCs, Centros Culturais e demais órgãos ligados à cultura deveriam investir mais em produtores como o Marcelo Bacha seria investir em uma pessoa dedicada e séria, no que se refere a arte e cultura.
6- Você está trabalhando com seu Trio. Fale sobre este trabalho e, também, dos seus projetos futuros.
O Nenê Trio é agora o meu objetivo musical principal. O nosso penúltimo disco saiu só nos EUA e tem como convidado o meu querido amigo e super-músico: Vinícius Dorin. O trio é formado por dois jovens e talentosos músicos: o pianista Moisés Alves, o contrabaixista Alberto Luccas e eu. As composições são minhas, portanto, nós tocamos um repertório original. O trio vem evoluindo ao longo destes três anos, tanto individualmente como nas composições; buscando fugir de coisas convencionais e tocar o mais livre possível, sem perder a característica dos ritmos do Brasil o suporte do trio. Quanto a projetos futuros, estamos conversando. A Rita Menezes, que é a nossa agente, está organizando uma turnê para o próximo inverno, na Europa. Mas, o projeto que eu gostaria de realizar, o mais rápido possível, é uma turnê Latino-americana (Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia).
Nós temos um repertório grande. Nós temos material para dois ou três CDs. E, nosso próximo passo, será gravar o novo CD do Trio que, espero, seja uma boa surpresa musical para todos.
Felipe Ávila é granjeiro, profissional da música há 30 anos guitarra e violão e dedica-se a fazer e ensinar música com arte e qualidade.
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