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O Estado de São Paulo - Caderno 2
Tatuí reúne o melhor do instrumental brasileiro
por: Lauro Lisboa Garcia
06.03.07
Nomes consagrados e emergentes ganham espaço nobre na sétima edição
do evento, realizado pelo conservatório da cidade, com 33 shows e 43 workshops
Raul de Souza, Renato Borghetti, Rosa Passos, André Mehmari e Ná Ozzetti, Marco Pereira, Itiberê Zwarg. Essa gente toda e muitos músicos mais transformaram a cidade de Tatuí, a 137 quilômetros da capital, numa grande festa sonora e harmônica desde 23 de fevereiro até sábado passado. Com shows no Teatro Procópio Ferreira, workshops no Conservatório de Tatuí e concorridas jam sessions no Espaço Cooperativa, a sétima edição do festival Brasil Instrumental continuou abrindo espaço para nomes consagrados e novatos, apresentou projetos inéditos, shows impecáveis e divertidas rodadas de improviso. Além do mais, contribuiu para o intercâmbio de instrumentistas de diversas origens (Áustria, Peru e Argentina incluídos), deixando a sensação de que é possível melhorar o mundo ao redor com arte, sensibilidade e consciência de sua importância.
Um bom começo é ter um ambiente favorável como este, que faz qualquer um voltar com uma certa esperança para o cotidiano. Boa parte da platéia é formada de músicos, estudantes do próprio conservatório, além de gente da própria cidade e interessados de terras distantes como uma violinista austríaca, que veio aprender mais sobre música brasileira. Muitos dos que estiveram na platéia em anos anteriores hoje estão no palco. E não é raro ouvir dos instrumentistas que experiências vistas ali transformaram suas vidas.
Um desses músicos é o guitarrista gaúcho Zoca Jungs, de Lajeado, que se formou no Conservatório de Tatuí e voltou este ano para ver os shows e colaborar no monitoramento dos workshops no festival. Isso aqui não tem em lugar nenhum. Além de aprender com os caras os músicos tem contato com várias correntes, aponta Zoca. Mas o ponto principal é o tratamento que a música brasileira tem aqui em Tatuí. É como os americanos tratam o jazz. Outro gaúcho, o sensacional violonista Daniel Sá, do grupo do gaiteiro Renato Borghetti, também ressaltou no workshop a mesma virtude. O conservatório de Tatuí é um dos poucos que tratam a música popular com a mesma seriedade da erudita.
Apontado como protagonista de um dos momentos mais marcantes do festival, Itiberê Zwarg passou quatro dias testando e trocando idéias com músicos novos; compôs com eles uma peça que foi apresentada com grande sucesso na noite de terça-feira passada. Outros projetos inéditos mostrados no palco do Teatro Procópio Ferreira foram o do Trio 3-63 e do saxofonista Mané Silveira. O trio - formado pelo percussionista Marcos Suzano, a flautista Andrea Ernest Dias e o pianista Paulo Braga, um dos organizadores do festival - só tinha se apresentado antes em Marselha (França). Em sua estréia no Brasil, apresentaram desde choros ancestrais do início do século passado até experimentos com música contemporânea.
Substituindo Johnny Alf, que cancelou sua participação por problemas de saúde, o quinteto de Mané Silveira antecipou os temas do próximo CD, ainda em fase de gravação. As cantoras Rosa Passos (com o baixista Paulo Paulelli) e Ná Ozzetti (com o pianista André Mehmari, chamado de gênio por parte dos estudantes na platéia) também brilharam com a voz, parêntese que o festival abre, sem preconceito. A gente não está negando a canção, já tivemos Joyce e Leny Andrade no festival, lembra o flautista Paulo Flores, o outro organizador. Nossa preocupação é valorizar a música não comercial, abrir horizontes e mostrar a diversidade. Para ele, a edição de 2007 se equipara à de 2002, quando se apresentaram Hermeto Pascoal, César Camargo Mariano, Banda Mantiqueira, Guinga e Toninho Horta.
Entre shows memoráveis, como o de Rosa Passos com Paulelli, do baterista Márcio Bahia e o citado encontro de Itiberê com jovens músicos, e animadas jam sessions, é notável o alto grau de cumplicidade entre instrumentistas como os dos grupos de Renato Borghetti e Raul de Souza, todos brilhantes. Além disso, vale ressaltar a generosidade dos veteranos em relação aos novatos. A Banda Brasil Instrumental, que homenageou o Maestro Branco, teve tanto espaço para Vinicius Dorin, Mané Silveira e Daniel Alcântara, como para os jovens Fernando Chequinho e Diego Garbin, que tocou ao lado do mestre Cambé - os três formados pelo Conservatório de Tatuí.
A jam session com a banda de Raul foi outro bom exemplo de intercâmbio entre novatos e tarimbados em território livre. Nesse aspecto, o festival é também bem sedimentado. Ao mesmo tempo que tem cacife para reunir nomes consagrados, como Marco Pereira, Proveta, entre muitos outros, também promove a mostra para principiantes. Já na quarta edição, teve nas anteriores gente como o trompetista Rubinho Antunes (que voltou agora para lançar seu CD), o Trio Setó, o pianista Marcelo Onofri, o grupo de choro Quatro a Zero e Fábio Leal, que, segundo o colega Zoca Jungs, é responsável por atrair um monte de guitarristas para aprender com ele em Tatuí. Predisposição para absorver novas experiências é o que não falta ali.
Paraíso com total liberdade de expressão.
É como os organizadores definem o evento, que tem ingressos a preços irrisórios
O texto no programa do 7º Brasil Instrumental, assinado por Paulo Flores, flautista e um dos organizadores do festival, alerta para certos perigos latentes: falta de memória, destruição do patrimônio, consumo imediatista. 'Muitos artistas detonaram a própria vida em função da arte, mas hoje as pessoas não estão preocupadas com o futuro próximo, só se pensa em dinheiro, em destruir tudo, em consumir', desabafa Flores. Como contraponto, o ambiente criado em Tatuí durante o festival se transforma no que o pianista Paulo Braga, o outro produtor do evento, chama de 'paraíso' para músicos e ouvintes. Por bons motivos: 'Música boa 24 horas por dia, preço acessível e total liberdade de expressão.'
Homenageado por superbanda na sexta-feira, o lendário Maestro Branco (ex-integrante dos Brazões e criador da Banda Savana) tocou no mesmo ponto. Para ele, abrigar um conservatório de tal importância sinaliza quanto é sensível a população da cidade. 'O mundo está vivendo muita barbárie, a sensibilidade de vocês equilibra um pouquinho', disse. 'A população não entende muito a música instrumental, mas quem ouve e gosta tem uma percepção muito maior das coisas. Entender é bobagem, tem até muitos músicos que não entendem. Importante é sentir.'
Sempre centrados na música brasileira, os organizadores operam pequenos 'milagres', impensáveis em cidades como São Paulo. Primeiro, porque a cidade se mobiliza em torno da música e você sente no ar sua influência contagiante. Segundo, que os ingressos custam R$ 3 e R$ 1,50 (para estudantes e idosos), sem contar as regalias de patrocínios. Se tivessem mais verba poderiam, por exemplo, montar curadorias e viajar para cidades mais distantes, como Recife, que concentra bons músicos, e trazê-los para cá.
Braga e Flores também se ressentem da falta de interesse maior da mídia. Só agora, após sete anos de realização, o festival foi alvo de reportagem da TV Tem, retransmissora da Globo no interior paulista. Os grandes jornais da capital também não deram até agora a devida atenção.
O festival é todo bancado pelo próprio conservatório, mantido pelo governo do Estado. As boas relações e o respeito que os músicos têm pelo conservatório também contribuem para que nomes consagrados se predisponham a participar. 'O festival é do jeito que a gente queria que o mundo fosse. O contato com o público, a relação entre os músicos, tudo é diferente', diz Paulo Braga. 'Dá certo porque todo mundo que vem tocar ou participar como aluno encontra um ambiente que não vê em lugar nenhum. A platéia fica torcendo para você fazer um bom solo. Isso é gratificante'.
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