Revista Sax & Metais
Tempero brasileiro no improviso
por:
Daniel Neves e Marcelo Soares
Edição:
Regina Valente
fotos:
Kriz Knack

Julho 2006 - nº 3

Mané Silveira
Seu primeiro CD Sax sob as Árvores (indicado ao prêmio Sharp em 1993) traz, na apresentação, as seguintes palavras, escritas pelo mestre Paulo Moura: “Suas composições fluentes entusiasmam e deixam no ar a expectativa de suas próprias realizações... Como solista, Mané Silveira segue a linha do improviso com matizes brasileiros, deixando nítida uma sensível influência de Victor Assis Brasil”. Outros grandes nomes da música instrumental brasileira também apontam para a sua sensível musicalidade. Trata-se de um saxofonista de grande conhecimento teórico e que conseguiu criar um estilo capaz de torna-lo uma das principais referências da música instrumental brasileira.

Compositor por natureza, Mané Silveira é conhecido pelo seu estilo acústico, quase artesanal. “Não tenho nada contra, mas não me atrai muito o uso de tecnologia”, diz o saxofonista, flautista, compositor, arranjador e professor da Universidade Livre de Música, em São Paulo, que começou a vida musical com outro mestre, Roberto Sion, há quase 30 anos. Deixou a faculdade de Direito e uma aparentemente promissora carreira como advogado para se dedicar à música – para nossa sorte – e, de lá pra cá, construiu uma sólida carreira. Começou tocando na noite paulistana, no início da década de 1980, faz parte do octeto Pé Ante Pé, que tinha, entre outros nomes, o saxofonista Teco Cardoso, e trabalhou com artistas de expressão nacional como Arrigo Barnabé, Johnny Alf, Nelson Ayres, Roberto Sion, Eduardo Gudin, Naná Vasconcelos e Guilherme Arantes, entre outros.
Em entrevista à Sax & Metais, Silveira fala de carreira, técnica, estudo e apresenta uma música de seu CD Ímã chamada Choro Moreno, que também toca com a Orquestra Popular de Câmara. Recentemente, participou do projeto Um Sopro de Brasil, que reuniu os principais nomes da música instrumental brasileira. No fim de agosto, grava um novo trabalho com o pianista Tiago Costa, Ricardo Matsuda (violão e viola caipira), Zé Alexandre (baixo acústico) e Kleber Almeida (bateria e percussão).

Sax & Metais – O que significa fazer música para você?
Mané Silveira – É um mergulho que se faz dentro de si mesmo. Na hora de se aprofundar na arte de composição, o artista tenta criar um universo próprio que ele quer comunicar para as pessoas, o mais importante para mim, é fazer isso sem uma preocupação com o mercado, se sua música é ou não comercial, se vai vender. Tem lugar pra tudo, nada precisa ser tão radical. Cada um sente o que quer fazer.

O que despertou seu gosto pela música?
Na minha família sempre tinha alguém que tocasse um instrumento. Minha mãe e tia eram pianistas, gostavam de música erudita e eu acabei aprendendo a tocar um pouco de piano, flauta e trompete. Gostava de mexer com instrumentos, mas nunca havia pensado em seguir carreira, não tinha este universo da música instrumental ainda tão forte. Ouvia a rádio Excelsior, Difusora... Ao 18 anos fui estudar no CLAM (Centro Livre de Aprendizagem Musical, do Zimbo Trio) com a pianista Eva Gomyde, que se tornou minha amiga.

Você pensou em ser músico?
Na verdade ouve outros projetos além da música. Entrei no curso de Direito na faculdade São Francisco, fiz até o terceiro ano. Mas sempre toquei, a música era uma atividade paralela forte.

Você desistiu do Direito e foi para a música. Foi uma decisão difícil?
Ah, é um pouco dolorido, gera um conflito interno. Eu me perguntava: “Será que vou conseguir me sustentar?”, “O que vai ser do meu futuro?”, coisas assim. Pensava que ia abandonar uma carreira, quando na verdade iria me afundar nela. Não era a minha praia fazer Direito. Mas, como comecei a estudar música tarde, com 18 anos, fica com muito medo de não dar conta. Só que existe algo que te leva, uma intuição. Nesse ponto sou muito grato aos meus pais, eles sempre me apoiaram. Ficaram aflitos e angustiados, claro, pois queriam que eu estudasse, tivesse um diploma. E já tinha até trabalhado em um jornal jurídico, fazia estágio em um escritório de advocacia. Mas com essa preocupação constante de “será que vou conseguir ser músico?” eu estudava muito, tocava de frente pro armário pra abafar o som e não incomodar ninguém. Inclusive o Sion até me contou, muito tempo depois, que meus pais foram procurá-lo (risos).

Como foi o início de sua carreira?
No período, começo dos anos de 1980, havia muitos bares para tocar à noite em São Paulo, ganhava um cachezinho legal, dava pra viver. Foi na época do Pé Ante Pé, quando a gente tinha esse frescor, um entusiasmo de fazer música pura, experimentar novidades e formatos, sem preocupações comerciais. O Pé Ante Pé era formado por mim, Teco Cardoso, Xico Guedes, do antigo Heart-breakers e que hoje toca no Havana Brasil, e Pete Woolly, baixista. Caito Marcondes, que também toca na Orquetra Popular de Câmara; Beto Caldas, no vibrafone e o Jarbas Barbosa, na guitarra; Homero Lotito, pianista da banda. Aliás, vários baixistas passaram pelo grupo – o Tuco Freire, que gravou o primeiro LP da banda, Nico Assunção , Gerson Frutuoso e o Otávio Fialho, que tocou muito com o Cartano Veloso. Em 1980 lançamos o primeiro LP, e foi aí que começou a brincadeira mesmo. Depois, participei de um grupo chamado Freelarmônica, do guitarrista Flávio Oriente. Era a época do teatro Lira Paulistana, quando houve uma efervescência da música instrumental. Pau Brasil, Grupo Um, todos os grandes grupos passaram por lá. Toquei também na banda Sabor de Veneno, do Arrigo Barnabé, chegamos até a gravar juntos o Disco Clara Crocodilo.

Quais são as suas influências?
O saxofone é uns instrumento muito ligado ao jazz. O mais natural é que você se interesse pelo jazz norte-americano, mas ouvi também muito choro, do Paulo Moura, K-Ximbinho, etc. Independente do rumo que o músico queira seguir em termos de composição, performance como instrumentista, no sax, flauta, clarinete, enfim, é importantíssimo beber na fonte do choro. É a primeira manifestação de música instrumental que começou a acontecer de forma organizada do Brasil no século19, com o flautista Joaquim Antonio da Silva Callado. Anacleto de Medeiros, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth. Eles criaram a música instrumental com forma definida, com improvisações. É importante para o músico brasileiro conhecer essa cultura do choro, porque ele te dá muita base instrumental. É uma fonte muito importante e dali você pode expandir. A maioria dos compositores, Tom Jobim, Hermeto, Sion, tem muita influência, mesmo que não seja da maneira tradicional.

Qual a diferença mais perceptível entre o instrumentista brasileiro e o norte-americano?
Em termos de musicalidade, o Brasil está bem servido, ainda mais com essa molecada que chega pronta, parece que já sabe tocar. Nos EUA, o músico americano tem mais tradição das escolas. Eles dão muito valor ao jazz como forma de arte americana, que é a raiz da música instrumental deles, ao passo que aqui a coisa é mais difusa. Mas é importante pontuar que existe uma influência muito forte da música americana em todos os níveis no Brasil, inclusive instrumental. Vale até como reflexão, para que agente possa pensar num jeito Brasileiro de tocar. E qual é esse jeito? Basta olhar nossas músicas: choro, frevo, baião, maracatu, as regionais, podemos ir pegando um sabor mais brasileiro. O próprio Victor Assis Brasil era um jazzista por excelência, mas com um tempero brazuca, colocava baião, samba. Então, é comum encontrar músicos de sopro com trejeitos e fraseados bem jazzísticos tocando música brasileira. Será que não é interessante explorar a rítmica brasileira? Eu tento fazer isso, não colocar fases de jazz e dividir a melodia do improviso ritmada em termos de choro, samba. Um bom exemplo é o Zezinho Pitoco, o José Alves Sobrinho. A formação dele é exclusivamente brasileira, não bebeu no jazz , tem a linguagem solidificada na música brasileira, no frevo, no maracatu, no samba, no rojão. Quando ele toca você percebe um sotaque bem brasileiro.

Você valoriza muito a formação do músico, estudar, treinar. Sempre foi assim na sua vida?
Ah, sem dúvida. Comecei meus estudos com aulas particulares com Roberto Sion, que foi meu professor de saxofone em 1977. Fui, então, sendo apresentado aos grandes mestres do jazz e aos do Brasil, como Paulo Moura, Mauro Senise, Hermeto Pascoal, John Coltrane, Charlie Parker. Nossa, é uma loucura! A cabeça começa a pirar (risos). Quando fui chamado para tocar com o Arrigo, eu também fiquei maluco. Não entendia muito, mas pensava: “Puxa, isso aqui é bom!” (risos). Era uma linguagem dodecafônica, ele usava muito técnicas de composição do que se chama de brincadeira de “dodecapop”, quase como um pop rock. A estética das letras é meio como uma história em quadrinhos, que é uma faceta do Arrigo de compositor contemporâneo. Depois aconteceu de formar o Sax sob as Árvores com o Benjamin Taubkin, o Guello. Foi minha primeira incursão nesse universo autoral, de criação musical. Só há um tema, Lenda, de Arrigo, de que ele participa fazendo o teclado. O restante são composições minhas, fiz arranjos para todos os instrumentos. Gosto deste processo em que você leva a composição e o grupo dá sua contribuição pessoal, um jeito de acompanhar, um arranjo. Embora você possa ser o band leader, acho legal trocar idéias.

Naturalmente, deve ter acontecido uma identificação sua com determinado músico ou estilo, até desenvolver sua própria linguagem. Como isso aconteceu com você?
Além do Sion e do Paulo Moura , músicos que sempre admirei, teve uma figura importante, o Victor Assis Brasil, que sempre me chamou muito a atenção, adoro até hoje. Tirei muita coisa dele de inspiração, solos. Fiquei muito contente, porque quando lancei o CD Sax sob as Árvores, na fase de pré-gravação, o Paulo Moura ouviu e gostou muito do trabalho. Eu pedi que ele escrevesse sobre o disco, e uma das coisas que ele disse é que o disco tinha exatamente uma influência do Victor. A influência é benéfica e muito importante, principalmente para os jovens que estão ingressando na música. Você tem de se abrir pra perceber e transmutar do seu jeito, até porque você não é igual ao outro.

Como é o seu processo de composição?
Comecei a compor quando estudava com o Sion. Na verdade, sempre fiz uns temas no piano, mas a coisa tomou forma nessa época, quando passei a tocar profissionalmente. Uso o piano como base de criação de composição. O compositor trabalha 24 horas por dia… De repente vem uma idéias, vou para o piano, toco muitas vezes até a música tomar forma e depois escrevo. É claro que depende da formação, posso acrescentar coisas. Mas primeiro vem a criação, toco no piano, passo para a partitura, levo-a ao ensaio. Às vezes vem mais pronta, às vezes não. No CD Bonsay Machine, o tema Baião Alucinado nasceu assim. Bolei uma frase no saxofone e ela ficou na cabeça, mostrei pro Paulo (Braga), pro Guello, e surgiu o tema.

A fase seguinte seria a de gravação?
Costumo levar as composições prontas para o estúdio, já ensaiadas. É bom também tocar antes em alguns lugares – bares, por exemplo -, para amadurecer a música. Gosto de entrar no estúdio e sair tocando, como no jazz. Gravamos o Sax sob as Árvores em dois dias, pré mixado em dois canais estéreo na fita DAT. Fazemos um ou dois takes de cada música para escolher qual a melhor. Às vezes fazemos alguma edição, mas que não compromete artisticamente, pois foi você mesmo que tocou. São apenas ajustes.

Você é ligado em tecnologia?
Na verdade, não muito. Procuro me aconselhar com as pessoas que conhecem o assunto. Mas não me atrai, embora ache-a uma faceta humana maravilhosa. Eu não tenho estúdio em casa, uso um computador com programa Logic para fazer as partituras, ligado a um teclado MIDI. Não uso muito a parte de áudio mas vou instalar algo para poder gravar. Sou meio artesanal, pré-histórico (risos).

Hoje você também é professor. É um caminho natural na vida de um músico?
Depois de certo tempo de carreira, você sente que pode passar algum conhecimento adiante. Comecei a dar aula particular e em seguida pintou o convite para trabalhar na ULM (Universidade Livre de Música), aqui em São Paulo em 1995. Dou aula uma vez por semana. Gosto deste trabalho. A ULM é uma escola importante, gratuita (pertence ao Governo do Estado de SP), que pode dar chance a muitas pessoas terem acesso ao ensino musical. Tem o papel de formar músicos e público, porque o aluno também aprende a ouvir, vai a concertos, estuda a história da música.

O que diria para quem está começando a estudar e deseja fazer música instrumental no Brasil?
A música instrumental popular brasileira é um campo muito amplo e variado e você pode fazer muitas experiências e mesclas, juntar influências, desde música erudita até música regional. Para isso é preciso buscar a profundidade, não só no instrumento ao qual se dedica, mas também na arte de composição. Aí sim, aprende-se como estruturar e desenvolver um tema, torná-lo coerente, orgânico, para que não fique uma colcha de retalhos, algo desconexo. É importante juntar intuição e inspiração com um conhecimento mais teórico e técnico. Uma coisa puxa a outra. Portanto, vá fundo e ouça de tudo!

Quem influenciou Mané Silveira
Ricardo Risek: “Grande professor, pensador e musicólogo, que inclusive faleceu este ano. Conhecia profundamente música erudita”.
Maestro Cláudio Leal Ferreira: “Outro excelente professor de São Paulo. Músicos como Proveta, Walmir Gil e Teco Cardoso estudaram com ele. Arranjador premiado, maestro e professor de harmonia e orquestração”.
Nelson Ayres: “Estudei com ele arranjos para big bands”.
Grace J. Henderson: “Flautista indicado pelo Sion com quem estudei”.
Köellreuter: compositor, professor e musicólogo alemão que se mudou para o Brasil em 1937 e desde então tornou-se um dos nomes mais influentes na vida musical do País. “Tive o privilégio de estudar composição com ele.

Setup de Mané Silveira
Instrumentos

Sax alto Seler 1951 Superbalanced Action
Sax soprano Selmer Mark VI
Sax tenor Selmer 1947 Superbalanced Action
Sou meio ligado às coisas antigas, é o timbre no qual fui educado, menos agressivo. Os instrumentos hoje são feitos com uma liga de metal mais forte para torná-los mais robustos.
Flauta transversal Miyasawa – “Essa marca japonesa é muito boa.

Boquilhas
Sax alto: “Uso uma B&N número 6, antiga, no sax alto, feita pela Norberto, inspirada na Meyer antiga.
Sax tenor: boquilha Norberto de massa número 6. “Gosto dessas boquilhas por causa do som. E os detalhes fazem a diferença: o tamanho da câmara, a maneira como é construida, a velocidade de passagem do ar, isso dá um timbre diferente.
Sax soprano: Selmer D

Palheta
Vandoren Java 2,5 (em todos os saxofones)

O Chorinho
Gênero musical eminentemente brasileiro e urbano, o ‘chorinho’, como também é chamado, é basicamente fruto da mescla de danças européias como a polca, heranças rítmicas africanas e o talento mágico do músico brasileiro. Villa-Lobos, como é sabido, incorporou o choro em parte de sua obra monumental. Outro elemento importante que temperou essa nossa música foi o jazz norte-americano. Também uma mistura bem engendrada da música européia com os gritos da mãe África, que, dando mais ênfase à improvisação e variações sobre os mais diversos temas musicais, influenciou muitos músicos brasileiros como Severino Araújo, K-Ximbinho, Luíz Americano, Abel Ferreira, Zé Bodega, o lendário saxofonista Casé, Paulo Moura, Nelson Ayres, Roberto Sion e Victor Assis Brasil, entre muitos outros.

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