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Folha de São Paulo - 18/03/2005 - E4
"Fruto" - O paraíso gentil e arrojado da pianista Heloísa Fernandes
Por: Arthur Nestrovski
Gravadora: Maritaca
De repente, sem nenhum aviso prévio, nenhuma mudança dos tempos, nenhum arauto especial, chega este disco para por a música de Heloísa Fernandes no mundo do resto de nós, agora mais rico e mais bonito. Pianista e compositora, ela entra na nossa discografia com impressionante segurança e considerável arrojo, interpretando um repertório instrumental com na companhia de parceiros como o percussionista Naná Vasconcelos e o violinista Cláudio Cruz - contrastes de nomes que dá, por si, a medida de sua originalidade.
A primeira faixa (Vôo) começa com um padrão repetido de quatro notas "dó", bem no meio do teclado, num compasso de 5/4. Dois detalhes: a síncopa, que desloca o desenho desde logo (o que não é incomum), e o acento na última nota, o que é mais raro e define prontamente a qualidade de Heloísa como artesã cuidadosa de sua própria música. Não surpreende que quem cuida de detalhes como esse venha depois se mostrar a virtuosística solista de linhas executadas em alta velocidade e rigorosa coincidência com o flautista Teco Cardoso.
Uma de suas maiores virtudes é mesmo esse impulso, uma alegria solar e sóbria, um contentamento no ato de fazer música que nem por isso se entrega ao prazer mais fácil, nem mesmo nas cenas de improviso e nos devaneios livres (como em "Rosa", de Pixinguinha, tocada aqui num duo com o mestre contrabaixista Zeca Assumpção). A direção musical de Gil Jardim com certeza tem parte nisso, e garante uma unidade ao disco que é tanto de forma como de espírito.
Nesse contexto, o "Fruto" do título ganha também conotações particulares. De um lado, as conotações particulares. De um lado, as conotações de paraíso e perda, gentilmente interiorizadas na poesia de Cecília Meireles (1901-64), cujo poema "Desenho" é citado no encarte: " Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira". De outro lado, a idéia musical de sentidos que se criam a partir de si mesmos, para se tornarem novos, até inteiramente mudados. E ainda: uma concretude física da música, alegorizada nas lindas fotos de frutos, de Marcílio Godoi, que fazem do encarte um completo visual para aquilo que não tem imagem.
Ex-aluna de Gilberto Tinetti, finalista do prêmio Visa em 2001, Heloísa é uma presença discreta no relativamente discreto cenário da música instrumental brasileira, que há tantos anos vem dando frutos incríveis assim. Não faz muitos shows, quase não aparece. Cultiva sua arte com dedicação e paciência, no tempo necessário para que tudo amadureça. E então esse disco.
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