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Revista Guitar Player
Arismar do Espírito Santo, em novo CD, revela todo seu prazer de tocar
por: David Hepner
fotos: Eni Cunha
Novembro 2006
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Arismar do Espírito Santo é daqueles músicos que estão sempre dispostos a tocar. Se está parado no trânsito caótico de São Paulo, ele saca um pandeiro debaixo do banco do carro e desenvolve novos ritmos. Se o deixam esperando no telefone, levanta a tampa do piano e procura novos acordes e melodias enquanto não respondem do outro lado da linha. Se o chamam de madrugada para dar uma canja em um barzinho, não perde tempo e vai. "Música é minha vida", define Arismar, sempre de bom humor, mostrando que fazer o que gosta traz, sim felicidade.
Não à toa Arismar adquiriu uma forma individual de criar belas melodias, ricas harmonias, ritmos contagiantes e improvisações ousadas na guitarra, violão de sete cordas, baixo, piano e bateria. Seu talento e dedicação à música geraram frutos, como shows e gravações com Toninho Horta, Hermeto Pascoal, Sebastião Tapajós, Hélio Delmiro, Sivuca, Heraldo do Monte, Lenine, Dori Caymmi, entre muitos outros. A lista de trabalhos com outros artistas é enorme. Seu primeiro álbum-solo ganhou o Prêmio Sharp de Música na categoria instrumental. Em 1998, foi eleito em votação realizada por Guitar Palyer um dos dez melhores guitarrista do Brasil.
Arismar está lançando seu terceiro disco-solo, Foto do Satélite (Maritaca). O CD traz 16 faixas que descrevem diferentes paisagens brasileiras e conta com participações de Dominguinhos (acordeão), Michel Leme (guitarra), Jane Duboc (voz), Proveta (sax) e outros músicos talentosos.
Arismar mora no bairro de Alto de Pinheiros, em São Paulo, com sua família e dois cachorros de grande porte - um branco e um preto -, que o músico batizou apropriadamente de Arroz e Feijão. Na sala, um o piano de parede vários cases de instrumentos espalhados. Nesse ambiente altamente musical, o músico recebeu a reportagem de Guitar Player, numa entrevista que retrata o profundo amor de Arismar pela música.
Como é o seu dia-a-dia de músico?
Tenho tocado muito piano e violão de sete cordas, pego uma música e fico estudando, experimentando sons. Por exemplo, abro o piano e estudo uma composição nova para colocá-la na ponta dos dedos. Às vazes, coloco o violão ou a guitarra no colo, sento ao piano e fico usando as inversões de um instrumento no outro. Cada um deles tem um universo próprio. E tiro da frente todos os conceitos e nomenclaturas. Procuro não saber em que tom está uma música. Há tons que soam mais brilhantes no piano, como E, F# e B, e toco num desses tons se busco esse tipo de sonoridade, mas não dou nomes. Qual a finalidade disto tudo? Estudar música, conhecê-la melhor.
Mas você toca outros instrumentos além do piano e violão.
Posso pegar uma caixa e um bumbo e tirar coisas rítmicas. Existe uma rítmica da alma, um jeito individual de tocar de cada músico. Quando paro no trânsito caótico de São Paulo, pego um pandeiro que fica debaixo do banco do carro e começo a tocar. Com todos os problemas que temos hoje em dia - insegurança, políticos mentirosos etc. -, a música só oferece coisas boas. Ela tem um escudo invisível que não deixa entrar nada de ruim. É a minha vida.
Não se preocupa com técnica?
Não apenas toco. Essa preocupação com técnica, o purismo, não vale a pena. Tocar é ir para cima. Analiso uma música, somente depois de pronta. Não considero complexa minhas composições. O legal é o tempero diferente. É como cozinhar com ingredientes variados.
Como é sua abordagem no violão de sete cordas?
A maioria dos violonistas não usa o dedo mínimo. Como uso esse dedo, sempre deixo soando alguma coisa lá no agudo, enquanto faço a melodia no meio e o baixo nas cordas graves. Uso unhas em todos os dedos, menos no polegar, que faz um lance meio de contrabaixo. Espero chegar a uma condição que todos os dedos ganhem independência. Levo ao violão uma divisão influenciada pela bateria e piano.
Em que instrumentos compôs as músicas do novo disco?
Luizinha saiu inteira no violão, Caiçara era um pedaço de uma música que eu tocava no piano. Na hora de compor, consigo imaginar quem poderia tocar aquela música, e a composição sai de uma determinada maneira.
Quais foram suas referências musicais no início de sua formação?
Minhas referências foram meu irmão Paulo Roberto e amigos que tocavam violão e cantavam. Ele trabalhava numa livraria em Santos e escutava a Rádio Eldorado, que tocava Toninho Horta, Wagner Tiso, Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal, Eduardo Gudin... Depois, me mostraram Oscar Peterson, Bill Evans, Scott LaFaro. Foi quando passei algum tempo estudando jazz, músicas muito bem executadas e suingadas.
O que escuta hoje em dia?
Além dos discos da moçada que toca comigo, tenho uma bolsa de primeiros-socorros com uns 30 CDs. Tem Dorival Caymmi, Bill Evans, Villa-Lobos, Pixinguinha, Dori Caymmi, Milton Nascimento. É um porto seguro. Ouço Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal, enfim, música brasileira.
O que é imprescindível para se fazer música?
Humor, em primeiro lugar, ainda mais nos dias de hoje. O mundo precisa de mais música, comida boa e felicidade. Quando toco, existe sempre uma conversa musical bem-humorada com os outros músicos. Se você deixa a música sair, ela flui sozinha.
Certa vez você declarou que Hermeto Pascoal era o melhor músico de todos os tempos Por que pensa assim?
Hermeto é o sol. Certa vez, toquei em um show no Sesc Pompéia e ele se sentou ao piano. Enquanto tocava, de repente, um senhor na platéia se levantou e deu um grito bem alto. O Hermeto disse na hora: "É, velho, grita alto mesmo!" O Hermeto causa esse tipo de reação. Adoro milhões de músicos, mas ele tem uma qualidade rude de que gosto muito, aquela coisa do pé-de-serra. Ele possui uma luz muito forte. Não é à toa que Hermeto toca desse jeito. Numa turnê, ele chegava a ficar o dia inteiro no piano, para colocar a mão no lugar certo. Ele ficava bravo consigo mesmo quando não conseguia fazer a música soar no andamento correto.
Você toca com muitos músicos jovens. Qual critério usa para determinar se um músico é bom ou não?
Teoria é a última coisa. Procuro escutar se está tocando bonito, se consigo entender a mensagem. Gosto de música com pressão, não importa o estilo. Curto caras que tocam à vontade, Alexandre Mihanovich, Michel Leme, Alexandre Penezzi, Zé Barbeiro... O importante é tocar junto, cada um na sua onda. Não toco rock, mas sei que Kiko Loureiro e Edu Ardanuy tocam muito. Gosto também do Joe Moghrabi, ele manda ver! Esses caras estão tocando bonito e emocionando. É disso que a molecada precisa: emoção. Outro dia eu estava no supermercado e ouvi uma senhora comentando sobre o psiquiatra de seu filho. Em vez de levar a criança ao psiquiatra, ela poderia colocar o filho apara aprender um instrumento, tocar com outras pessoas, ser feliz!
Você enxerga o disco como um show?
O CD deve ter mais qualidade sonora e um cuidado especial. São amostras de música, sem improvisos longos. É gostoso de ouvir. Deixei as partituras com os músicos que participaram do disco e fizemos shows antes de gravar para amadurecer a execução. Foto do Satélite tem uma idéia do começo ao fim. É um CD de um compositor mostrando várias paisagens tocando com seus amigos, num ótimo clima. Foi gravado no estúdio, com pouquíssimos overdubs.
Seu filho Thiago Espirito Santo cuidou da produção. Qual foi seu papel?
Ele se preocupa mais com os timbres, a qualidade sonora. Hoje em dia existe a febre da produção. Há produtores que chegam ao estúdio com uma bula cheia de fórmulas, que segundo ele, você deve usar. Esses caras não sabem nada, são antimusicais. O disco não vai vender mais só porque o produtor determina o que você pode ou não tocar. Depois de 10 anos, você pode encontrar um músico infeliz por ter gravado aquilo. Esses produtores são do mal. São ex-músicos. Não deram certo tocando e viram chatos, que acham que sabem de música e ficam dando palpite.
Como pensa ao improvisar?
O que importa não é a quantidade de notas, e sim a escolha delas. Se o músico vem com 30 frases prontas, pode ficar um ano tocando, mas serão apenas frases prontas. Quando improviso, tento ir ao máximo a lugares diferentes. Como dar qualidade a uma nota? É fazê-la soar junto com outros músicos ou, se estiver tocando sozinho, com você mesmo.
Que equipamento tem usado?
Pedi um violão com tensor para a Giannini, por causa das muitas viagens pelo Brasil, que acabam influindo no braço do instrumento. Estou desenvolvendo com o luthier Márcio Zaganin uma guitarra semi-acústica, com braço de jacarandá legalizado pelo Ibama. Tenho uma Ibanez GB10. É boa de tocar e tem um timbre muito bom para música brasileira. Eu tinha uma Gretsch 1959. Gravei meu primeiro disco com essa guitarra, mas ela só tinha um timbre legal para jazz, os outros eram nasalados demais. Acabei passando-a para frente. Não sou apegado a instrumentos. De vez em quando, resolvo trocar tudo. Tenho usado cordas D'Addario, inclusive para o sete-cordas. Por estar a serviço da música, amanhã posso resolver tocar outro som. Aí pego cordas com outras especificações para o violão manter-se vivo.
O que aconselha a quem está começando a tocar?
Ouvir sem preconceito e tirar músicas. Se uma massa tem um sabor gostoso, quero aprender a fazer aquilo. Com música é a mesma coisa, você deve aprender a fazer o que gosta. Tire, componha, experimente, esteja aberto a tudo. Toque sem amargura, sem essa coisa de "paixão triste". E não se compare ao seu ídolo. Você nunca tocará como ele, porque é outra pessoa. Considere seu ídolo como um parente que faz parte de sua vida, mas sem a necessidade de ser como ele.
Música é sinônimo de felicidade?
No meu caso sim. Às vezes estou em casa e o telefone toca de madrugada com gente me chamando para tocar. Tomo um banho e vou. Minha família já está acostumada. Outro dia fui ao bar Ó do Borogodó. Estavam o Alessandro Penezzi e o Zé Barbeiro. Dei uma canja e me diverti bastante. Toco também para encontrar os amigos. A música tem esse lado social. Quando toco com o Michel Leme e o Alexandre Mihanovich, no Blen Blen, saímos de lá sempre felizes, suando em bicas, pois tocamos feito loucos. É um som que você não consegue fazer em casa. Guitarra com cordas .012 ligada no amp - é uma explosão linda, divina. Tocar com outros músicos, num palco, para um público, é diferente. Música é um alimento. E a família tem de ter muito amor, porque ninguém agüentaria morar com uma pessoa que toca o dia inteiro.
CD Foto do Satélite
"Esse trabalho contém altas doses de humor, amizade, música, música, música... amor, dedicação, carinho, sérias viagens ao cerne da música. Valeu!"
Arismar do Espírito Santo
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