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- 08/01/2005
"MPB instrumental"

Por: Tárik de Souza

Harpa, bateria, piano, percussão, violão, acordeom, sopros e pandeiro ligam passado e modernidade em cinco novos CDs

Da tradição antepassada - restaurada com esmero - ao diálogo com a modernidade sem agredir os cânones. Cinco discos basicamente instrumentais de latitudes diversas promovem essa travessia. De composições do período conhecido como belle époque da MPB, entre 1865 e 1920, do CD Serenatas & saraus - Que noite de encanto! (Funalfa), garimpadas pelo pesquisador José Silas Xavier, aos recentes repertórios dos chorões compositores Afonso Machado (Bandolim do Brasil, Rob Digital) e Mauricio Carrilho (Sexteto + 2, Acari Records). Do piano fronteiriço erudito/ popular de Heloísa Fernandes (Fruto, Maritaca) à harpa, também clássica, com Cristina Braga à frente de um quinteto, num repertório essencialmente emepebista (Harpa brasileira, Kuarup). Ligados à estética brega por conta do sucesso da harpa paraguaia (mais leve que a erudita, sem pedais, em escala diatônica despida de semitons), dedilhada por Luis Bordón no megasucesso A harpa e a cristandade (disco que vendeu milhões de cópias a partir do natal de 1959), os glissandos do instrumento também podem ser utilizados numa abordagem mais arrojada.

Ex-integrante do grupo Opu5, Cristina não escapou ao óbvio gravando os CDs Feliz natal (1997) e Natal brasileiro (com a soprano Céline Imbert, em 1998). Mas deu jogo de cintura ao pesado instrumento exercitando-se no acompanhamento de shows e gravações de astros tão diferentes como Nara Leão, Angela Rô Rô, Moreira da Silva, Zizi Possi e Titãs. Harpa brasileira surpreenderá os que contemplam a doce imagem da harpista nas fotos de capa e contracapa. Cercada por bateria (Joca Morais) e dois percussionistas (Marcos Zama, Mestre Paulão), ela instala um ribombante clima industrialista no clássico da bossa Manhã de carnaval. E suinga em outro, Insensatez, afogando a melodia em modulações, com rufos de bateria nos breques. Outro totem, Corcovado, ganha espessura no diálogo com o violão baixo de Ricardo Medeiros, e Baião malandro (Egberto Gismonti), uma tonelagem rítmica que contrasta com a harpa. Cristina ainda surpreende no vocal leve e camerístico de Derradeira primavera e Assum preto.

Também camerística, com muita variação de dinâmicas, é a performance de Heloísa Fernandes em Fruto. Seu piano culto, acompanhado por músicos de longo trajeto na MPB, como Zeca Assumpção (baixo) e Teco Cardoso (flautas), além de uma participação da percussão e voz de Naná Vasconcellos na faixa Colheita, imprime densidade e tensão tanto ao repertório de própria lavra (Vôo, Jasmim e a segmentada Suíte das meninas) quanto nos alheios Rosa (Pixinguinha) e Trilhos urbanos (Caetano Veloso), onde soa ainda mais transparente sua maestria.

A palavra é boa para adjetivar também as atuações de Afonso Machado e Maurício Carrilho nos CDs que assinam. O de Afonso (fundador do grupo Galo Preto) traz dez inéditas em 14 faixas e intervenções de músicos de estirpe, como Guinga, Cristóvão Bastos, Bartolomeu Wiese, Alceu Maia, Celsinho Silva, Jorge Simas, Rui Alvim, Alexandre de La Peña e outros. Três faixas foram gravadas em Mamoe (Suécia) na turnê do duo que Afonso mantém com Bartholomeu Wiese (violão), junto com o Quarteto Sueco liderado pelo acordeom de Lars Holm, incluindo o frevo Suassuna, homenagem que soa ironia ao nacionalista ortodoxo Ariano Susassuna. Ou não, já que os alienígenas é que se rendem ao gênero nativo. O mesmo ocorre ao saboroso baião A última barca, onde o batera Anders Vestergard incorpora o pulso da zabumba. Os demais temas variam da valsa Aquela ilusão, inédita parceria de Afonso com o virtuose Raphael Rabello (1962-1995), precocemente desaparecido, ao choro levemente nostálgico Angenor, dedicado a Cartola por ele e o parceiro Elton Medeiros. Mas há ainda modinha (Cantiga de primavera, com Paulo Cesar Pinheiro), samba gingado (O que é que há?, com Luiz Moura) e o elegante choro canção A lua e o conhaque, que deu título ao disco do parceiro, Delcio Carvalho.

Já o CD de Mauricio Carrilho, também de inéditas, caracteriza-se pela generosidade. Não privilegia seu instrumento, o violão. Intitulados com nomes curiosos, os choros evocam a atmosfera espontânea do início do gênero e homenageiam os colegas (Carrilho assoviando, Pedro Paes no Cosmopolita, Bernardes Gafanhoto) ainda contemplados com espaço para intervenções como o baterista Oscar Bolão em Olha o breque, Bolão! e o pandeirista Celsinho Silva em Um abraço no Celsinho. O eixo do CD é o naipe de sopros em escala do grupo, formado por flauta (Marcelo Bernardes), clarinete (Pedro Paes) e clarone (Rui Alvim), movidos a contrapontos e dissonâncias. Tradição e modernidade norteiam estes ''caixeiros viajantes do tempo em seu leva-e-traz do passado ao futuro'', como define a jornalista Nana Vaz de Castro na apresentação.

Já em Serenatas & saraus, a máquina do tempo só fornece bilhete de ida. A intenção do produtor Silas é reproduzir uma época anterior à massificação com um pequeno grupo de músicos locais, a pianista Wanda Lantelmi Silva, o violonista Wellington Duarte e a flautista Aline Silveira, com eventuais participações do tenor Carlos Eduardo Nascimento e da soprano Maristane Resende. Quando a indústria musical começou a funcionar, o soteropolitano Xisto Bahia (1841-1894) já havia morrido, mas permanecia o sucesso de seu lundu Isto é bom, registrado, em 1902, no primeiro disco da lendária Casa Edison. Mais um lundu (ancestral do samba) de Xisto entra no disco, A mulata (parceria com Mello Morais Filho), além de O camaleão, harmonizado por ele. Outro nome básico da pré-história da MPB, o flautista Callado (Joaquim Antonio da Silva Callado Junior, 1848-1880), chamado de ''pai do choro'', tem incluída sua valsa Ermelinda. Há outros autores menos conhecidos, como Inácio Gama, que compôs em 1865 a valsa Passavas linda para Maria Luiza, avó do escritor mineiro Pedro Nava. Ou o também precursor Misael Domingues da Silva, alistado em três faixas no disco nunca antes gravadas: a polca Vamos dançar, a valsa Diva e a rêverie Ao longe. De volta para o futuro.

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