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Rev. Continente Multicultural
Benedito seja
por: Isabelle Câmara
Recife, Agosto 2007
1ª Coletânea de CDs "Será o Benedito?!?" resgata a vida e a obra
musical do genial e polêmico Benedito Lacerda
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O flautista Benedito Lacerda e Pixinguinha
em ilustração de Paulo Flores
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Ele nasceu no mesmo ano de Ary Barroso, 1903. E, certamente, quando foi batizado seus pais não imaginavam que ele seria louvado por “flautear” nas pautas musicais como um deus: Benedito Lacerda introduziu o samba no choro; compôs mais de setecentas músicas, entre elas “A Jardineira”; gravou mais de 1.000 discos; criou um perfeitíssimo Regional, batizado por Sinhô como Gente do Morro - embrião de um conjunto que fez escola, referência até hoje no gênero pelos efeitos nos sopros e cordas e que foi o preferido por 10 entre 10 cantores do rádio. Como se não bastasse, ainda tirou Pixinguinha do esquecimento, nos anos 40, tornandose seu maior parceiro.
Conta-se até que Benedito teria pago a hipoteca da casa de Pixinguinha e este, em sinal de gratidão, tê-lo-ia transformado em parceiro de pérolas como “Sofres porque queres”, “Naquele tempo” e “1x0”. Foram 34 gravações de 1946 a 1951. Mas o que importa é destacar os arranjos e contrapontos executados pela dupla, que revolucionaram a instrumentação brasileira e influenciam os novos até hoje. Nada foi tão prolífero e extasiante na história da música popular brasileira quanto essa parceria. E o homem que ressuscitou Pixinguinha também foi um dos fundadores da UBC - União Brasileira de Compositores e da SBACEM - Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música.
Porém reza o catecismo dos chorões que Benedito foi ladrão. Talvez por isso sua memória tenha sido crucificada. De Pixinguinha, teria assumido composições em parceria que na verdade não foram feitas.
Também tem o caso de “A Jardineira”, no qual ele e seu parceiro, Humberto Porto, foram acusados por Almirante de terem se apropriado de um motivo popular do final do século 19, do cordão Filhos da Primavera. Outro folclore é com o ritmista Baiaco (Osvaldo Vasques), que levava novos compositores para o Café do Mangue e Benedito ficava escondido atrás de um biombo escrevendo os sambas que ouvia, para depois editá-los em nome dos dois.
Polêmicas à parte, certo é que Benedito era um sucesso. Com seu Regional, não lhe faltava trabalho, estava no auge e suas músicas eram gravadas por grandes estrelas do rádio, gerando até disputas, como a que aconteceu entre Carmen Miranda e Alzirinha Camargo, pela marcha “Querido Adão”. Foi o que se chama hoje de self-made man: nasceu pobre, mas administrou muito bem a sua carreira. Fez da música uma indústria. Ganhou dinheiro e gerou empregos através dela. Era tido como aquele que tinha o melhor grupo, os melhores parceiros e os melhores cantores. Todos o disputavam como a Terra Prometida.
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Benê o Flautista - Redação
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O flautista - Benedito Lacerda começou a aprender flauta, de ouvido, aos oito anos de idade. E é justamente o flautista, inquestionável, que é homenageado na coletânea Será o Benedito?!?, que vem com quatro CDs e um livreto, porque ainda tem o Benedito cantor, chorão, compositor, sambista, carnavalesco, empresário, arranjador, polêmico, abençoado, genial, político, empresário, fazedor, idealista, classista, criador, financista, patrão, letrista, fumante, sindicalista, o branco d'alma preta - e que não caberiam nesse projeto idealizado pelo também flautista, compositor e arranjador Paulo Flores e desenvolvido pela Maritaca Discos, com o apoio do Programa Petrobras Cultural. Esta é a primeira de uma série de três caixas.
O reconhecimento devido vem tardiamente, mas ilumina sua memória. O CD 1 traz o conjunto Gente do Morro e Benedito como solista e cantor em canções como “Preto de Alma Branca”, “Gorgulho” e “Primeira Linha”. O CD 2, “Benê e Pixinga”, reúne sua deslumbrante parceria com Pixinguinha em mais de 20 pérolas, como os choros “1x0”, “Cochichando”, “Cheguei”, mas também a polca “Atraente”, de Chiquinha Gonzaga, alguns choros de Jacob do Bandolim e “Tico-Tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu.
Já os CDs 3 e 4 apresentam gravações do seu Regional acompanhando, entre outros, Francisco Alves, Carmen Miranda, Almirante, Araci de Almeida, Orlando Silva e Sílvio Caldas em marchinhas, sambas, valsas e canções. O libreto traz a cronologia da vida de Benedito relacionada com fatos importantes do mundo, um aprofundamento nos principais acontecimentos de sua vida, como o samba e o grupo Gente do Morro, e um “Abenedário” que mostra personagens e artistas que fizeram parte de sua vida.
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Será o Benedito?!? (caixa com 4 CDs),
Benedito Lacerda - Maritaca
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Será o Benedito?!? é um trabalho quase artesanal, especialmente na garimpagem do acervo, e de uma incomparável riqueza histórico-musical e estética; em todos os CDs ouvem-se ruídos, chiados e cracks que revelam acontecimentos sonoros e nos transportam para os anos 20, 30, 40. Segundo Homero Lotito, engenheiro de som que conduziu o tratamento técnico das gravações, eles optaram por manter a máxima integridade da sonoridade dos instrumentos e vozes originais, evitando filtros e compressões que cortam muitas freqüências e chapam o som em demasia. Paulo Flores explica: “A digitalização foi tratada com novo enfoque filosófico. Os fonogramas em 78 RPM foram afinados, talvez de maneira inédita, no padrão Lá (A) 440Hz, resultando num diferença brutal no andamento e timbre, principalmente das vozes dos cantores. O trabalho de masterização foi direcionado para a clareza do grupo, e não dos solistas somente, para isso a limpeza dos ruídos foi mais amena do que a realizada comercialmente”.
Benedito Lacerda morreu num domingo de carnaval, em 1958. Ele que tanto sucesso obtivera em vários carnavais. Deve ter subido aos céus tocando flauta, fazendo festa.
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