Revista Sax & Metais
A inquietude produtiva de Teco Cardoso

por: Débora de Aquino
fotos:
Dani Godoy

Setembro 2006

Teco Cardoso
Ele é uma das figuras mais representativas da música instrumental brasileira contemporânea.
Inquieto com suas próprias conquistas, está sempre querendo ir além. Acredita que a música não existe somente para o entretenimento, mas sim como uma função de harmonizar as pessoas. Assim é Teco Cardoso, um músico que aprendeu a lidar com as diversas situações durante o período em que cursou medicina. Foi quando aprendeu a conhecer o povo brasileiro e suas manifestações mais diversas, traçando, então, um rumo singular para o desenvolvimento de sua arte.


A família já parecia indicar o caminho: a mãe é pianista erudita que fez carreira e ganhou concursos na década de 1950. O irmão, cinco anos mais velho, gostava de jazz e tocava bateria acompanhando os discos de que gostava. Teco Cardoso cresceu ouvindo música ao vivo dentro de casa, mas, curiosamente, decidiu fazer faculdade de medicina, antes de enveredar definitivamente para a vida musical.
Porém, conciliar duas carreiras tão intensas teve sua dose de sacrifício. Teco acabou optando pela música no começo dos anos 1980, mas sempre levando consigo as experiências adquiridas nos cinco anos em que cursou medicina. Por dois anos estudou piano erudito, depois ganhou uma bolsa de estudos de flauta doce. Parou de estudar e passou a tocar de ouvido. Mudou-se para o Rio de Janeiro e, alguns anos depois, de volta a São Paulo, com 15 anos, conheceu o CLAMCentro Livre de Aprendizagem Musical Zimbo Trio, onde teve aulas com Hector Costita e Léa Freire e estudou flauta transversal e saxofone de forma mais acadêmica.
Ainda teve como mestres Keith Underwood (flauta), Claudio Lael (harmonia), e Moacir Santos (contraponto). Faz diversos trabalhos com artistas da MPB como Edu Lobo, Dori Caymmi, Joyce, Johnny Alf, Oscar Castro Neves, Marlui Miranda e Mônica Salmaso, entre outros. Tem trabalhos de projeção internacional e, hoje, atua mais for a do que dentro do País.

Sax & Metais - Você vem de uma família musical. Deve ter sido uma experiência interessante.
Teco Cardoso - Sem dúvida, até porque meu irmão, Paulo Cardoso, já tocava com a geração um pouquinho antes à minha, que surgiu do CLAM, formada pelo Nico Assunção, Eliane Elias e o próprio Paulo. Eles tinham um grupo, estavam se profissionalizando, tornando-se professores da escola. Eu era a mascote e cresci ouvindo um som na minha casa quando estava começando a tocar. Nessa época, a Léa Freire foi uma pessoa fundamental. Quando passei a estudar com ela, já tinha tido um ano de aula com Hector. Então, em vez de ficar só com as aulas semanais ela me chamou para estudar em horários livres. Tive facilidade porque morava perto da escola. Foram dois anos de estudo em que evoluí muito rápido. Passei de alguém que tinha um bom ouvido, mas que não lia música, a um leitor, um músico que de repente estava tocando com os feras. Tive o prazer de sempre tocar com gente muito boa, sempre acima do meu nível, e isso tudo me puxou muito rápido.

E onde entra a medicina nessa história?
Fui fazer vestibular para medicina, que era o que eu gostava, e entrei. Mudei para Santos porque a faculdade era lá. Nisso, minha geração começou a acontecer – era o Ulisses Rocha, o Michel Freidenson. Montamos um grupo, o Pé Ante Pé, com Caíto Marcondes e Mané Silveira e gravamos o primeiro disco, LP, produção independente. Comecei uma carreira de músico amador de estudante de outra coisa. Mas era assim: o Mané fazia direito, o Caíto Arquitetura, éramos todos estudantes de alguma coisa, e gostávamos de fazer música. A música foi crescendo, montei uma banda própria, depois veio o ZonAzul. Comecei a tocar com o Grupo Um, muito importante nas décadas de 1970 e 1980, de onde saiu o Mauro Senise. Eu entrei no lugar dele.

Dava para conciliar carreiras que exigem tanto do profissional?
No decorrer da faculdade começou a carreira de músico de fato. Em 1972, quando eu estava no quinto ano de medicina, já tinha gravado vários discos, viajado pelo País, então surgiu uma turnê para a Europa com o Grupo Um. Foi a primeira vez que fui tocar for a do Brasil. Nesse ano caiu a ficha de que a música não era mais hobby. Fiz esse último ano já sabendo que não ia ser médico, mas fiz como se fosse. Foi uma experiência muito interessante, em que pude realmente entrar nos ambulatórios, cuidar de pessoas. Aprendi muitas lições musicais nesse ano. Disso tudo veio esse despertar interessante. Percebi, primeiro, que eu tinha de ser músico. Segundo, que a medicina não tinha sido em vão, foi um estudo para me engrandecer humanisticamente. E terceiro, passei a ter a visão de que a música tem uma função de harmonizar as pessoas. É uma função terapêutica importante, trabalhar a concentração, aprender a ouvir a música instrumental, limpar sua cabeça e acompanhar aquilo, se sensibilizar.

Quais foram as suas influências? O que você gostava de ouvir quando começou a estudar?
Foram muitas. Fui descobrindo as pessoas que me emocionavam mais, como Miles Davis, Chet Baker, músicos que tocavam baladas, que construiam os solos com menos notas e mais emoção. Isso logo foi aparecendo para mim como mais interessante. Quando fui estudar os instrumentos, descobri os instrumentistas. Na flauta, encontrei Hebert Laws. Descobri também o choro, o Pixinguinha com o Benedito Lacerda. Tinha também o jeito de tocar do Copinha. O Nivaldo Ornelas sempre foi um saxofone muito importante para mim. O Cacacu, que tocava sax barítono com o Hermeto Pascoal. Hoje eu toco barítono por causa do Moacir Santos e do Cacau. Ion Muniz foi um sax tenor muito importante que eu vi tocar e com quem depois toquei junto. Comecei a entender que havia uma linguagem brasileira a ser buscada, e Paulo Moura foi o responsável em primeira instância. Depois Edson Machado e Samba Novo, Abel Ferreira, com o clarinete e sua maneira de articular o choro, passeia gostar muito disso. Então me interessei pelo samba. Comecei a perceber que não precisava ouvir somente sax e flauta. Tinha o Maciel do Trombone, o Raul de Souza, eu podia trazer o trombone para a flauta, para o sax. O Hermeto Pascoal e o Egberto Gismonti foram músicos muito importante para a minha geração. Instrumentistas fantásticos com bandas incríveis, todo mundo que tocava com eles crescia muito musicalmente. Traziam um Brasil completamente original e contemporâneo. Comecei a ter influências de tudo. Abri os ouvidos para tudo. Phil Woods com seu sax alto, Vitor Assis Brasil, Wayne Shorter. Mas gostava de quem tinha conteúdo, de quem com poucas notas dizia quase tudo.

Quem conhece o seu trabalho percebe que você é uma pessoa que pesquisa, que busca outras sonoridades. Como conseguiu chegar a esses resultados com as diferentes flautas com que trabalha?
Venho de uma família que gostava de música erudita e também popular. Minha mãe ouvia Tom Jobim, jazz, Rachmaninov, Prokofiev, Vladimir Horowitz, Oscar Peterson, Dave Brubeck, era tudo muito aberto. Sempre gostei de não ter barreiras, de poder trazer todas as linguagens, a música erudita, a popular, os ritmos brasileiros. Quando descobri essa questão sensacional que é a de ser músico brasileiro no Brasil, um País que tem uma diversidade tão grande, percebi a importância disso tudo. Tem Mais: o músico paulistano é um pouco menos compromissado do que provavelmente o músico pernambucano. Este tem compromisso no frevo, o carioca tem no choro, no samba. O paulistano é privilegiado porque tem tudo isso aqui dentro e, ao mesmo tempo, não tem uma tradição tão forte que o faça ter um grande compromisso. A minha busca sempre foi digerir todas essas informações. Quando pego um pife, vou pesquisar o que é a linguagem de uma flauta de bambu nordestina, de uma flauta de bambu indígena, uma flauta Kamaiurá, como cada região usa os instrumentos. Então aproveito esse instrumento para colocar minha informação, minha música, o que quero fazer com isso. Tive o prazer de trabalhar com a Marlui Miranda, que é uma grande musicista e pesquisadora da música indígena, brasileira, que me apresentou uma série de flautas: as Uruás, flautas grandes dos rituais do Kuarup; as Kolutás, dos cerimoniais, que possuem afinações bem específicas, com poucos recursos, só tem quatro furos. E assim foi.

Onde você acha que estão as fontes da música brasileira hoje? Como é o processo composicional da música contemporânea?
Hoje temos a oportunidade de ter material que até pouco tempo não tínhamos. Por exemplo, um trabalho como o do maestro Moacir Santos, que é um grande inovador no arranjo brasileiro, na questão do lidar com a africanidade, com a afro-brasilidade. Temos um material muito vasto para poder entender um pouco da diversidade do Brasil. Desde achar partituras de Chiquinha Gonzaga até a bossa nova, ou a pós-bossa nova, até o Guinga. Então dá para entender que isso tudo é um leque muito aberto. O que acho interessante é sacar essa abertura. Fazer música com os elementos básicos: ritmo, harmonia e melodia. É necessário buscar as fontes rítmicas brasileiras, o frevo, o maracatu, o afoxé. Entender porque aquelas manifestações têm determinado swing, de onde vem aquilo. Assim você estabelece relações que vão lhe dando dicas. O gaúcho toca aquelas rancheiras tão mastigadas e articuladas porque come aquela carne mais dura, mastiga e toma chimarrão. Essa é uma forma de entender as manifestações de maneira mais holísticas. A composição contemporânea é dizer algo que tenha a ver com o seu momento. Quando você olha os movimentos que ficaram e que são importantes, percebe que estão relacionados com o momento histórico dos quais fizeram parte.

O que você busca em sua música?
Hoje temos de entender para que fazer música. Busco na música a harmonia, no sentido amplo, de harmonização pessoal. Já houve o momento denúncia. Se olharmos dez, 15 anos atrás, o importante era colocar a verdade. Hoje a arte não precisa denunciar nada. Ao sair na rua, a denúncia pula na sua cara. A arte precisa oferecer uma saída, não mostrar o problema, isso todo mundo está vendo. Quero fazer música nos grupos dos quais faço parte. A música instrumental induz a uma subjetividade que demanda que a audiência entre com uma parte. A pessoa tem de trazer o que ela quer sentir. Por mais que seja uma balada, e que te leve para um lado mais romântico, mais saudosista, cada um que está ouvindo vai criar a sua história dentro daquilo. E acho o improviso importantíssimo, porque é uma continuação daquela melodia, daquela história, muitas vezes tem uma letra, mas só que você está tocando instrumentalmente. É uma responsabilidade continuar uma letra que está rolando.

Às vezes vemos uma demonstração virtuosística do músico o tempo todo. O que você pensa disso?
Acho muito importante o músico estabelecer três contatos. Primeiro é você consigo mesmo. Se não estiver se divertindo enquanto toca, fazendo algo em que acredita, é melhor não fazer. Segundo: você tem de estabelecer contato com os músicos com os quais toca, tem de se divertir e fazer com que eles se divirtam. E o terceiro e mais importante: não tocar somente para si, e sim para uma audiência. Estando servindo à música, e não ao contrário. Sou um músico que ouve de tudo, mas tem muita coisa do instrumental contemporâneo que não agüento ouvir três músicas. Começa a ficar muito complicado. Às vezes um acorde parado, uma coisa completamente mântrica, modal, simples, fácil, me emociona muito mais do que algo complicado.

Você acredita que a música instrumental está ganhando força novamente?
Sim, por exemplo, o “Sopros do Brasil” é um projeto do qual eu participei. Foram quatro fins de semana, veio gente do Brasil inteiro, lotou o Sesc Pinheiros. Outro é o “Pife Muderno”, do Carlos Malta, sensacional. O trabalho do Proveta, que pode ser considerado um dos maiores solistas e arranjadores do mundo, seja no trabalho com a Banda Mantiqueira ou no disco novo. O Spok veio com uma orquestra de frevo absolutamente de arrasar, poucas big bands no mundo tem esse som. O Brasil tem muita coisa nova e o interessante é que está com um pé na tradição, no folclore, e o outro na modernidade. São trabalhos muito interessantes e acima da média do que tenho visto em festivais de jazz e world music pelo mundo. Temos conseguido fazer aqui uma coisa muito fresca e ao mesmo tempo muito original. Estamos dando continuidade a uma cultura que tem tudo para se colocar no Primeiro Mundo.

O que você está fazendo atualmente?
Estou acabando de produzir o disco novo da Léa Freire, um trabalho de dois anos e meio. É uma das compositoras contemporâneas mais fantásticas. Ela traduz toda uma diversidade, mostra um Brasil tradicional de várias vertentes, várias linguagens., mas completamente século XXI, uma cara muito atual. Nesse trabalho, pensamos em cada música como um desafio, com diferentes instrumentações e arranjos. Fizemos 11 faixas com o que há de melhor em matéria de músicos de hoje. Solistas como Proveta, André Mehmari, Paulo Bellinarti. Acabando esse trabalho, começo a produzir um disco meu novo. Estou me devendo isso. Quero fazer algumas coisas minhas originais e outras de amigos. Tenho o prazer de trabalhar com grandes compositores, que são o Mozar Terra, a Léa, a Joyce, o Sérgio Santos, gente muito boa. É bom ter gravado esse repertório, gente da minha geração. Também estou devendo um trabalho novo com o Ulisses Rocha, a volta do duo. Acho que agora não vai escapar. Estou louco para fazer, acho que é muito gostoso trabalhar em duo.


Dicas para trocar de embocadura
1) Tenha um local para todos os equipamentos. “Em casa tenho uma estante, além das que levo para os shows. Sempre que chego procuro deixá-los montados em casa, para estar tudo à mão. Dependendo do trabalho, dou mais ênfase a um ou a outro”, conta Teco.
2) A flauta é uma embocadura que deve ser trabalhada todo dia. “Costumo tocar o barítono por meia hora e depois o píccolo, para a boca saber se acostumar a mudanças rápidas. Coloco um disco de que gosto, faço uns chorus de soprano, pego a flauta… Vou trocando os instrumentos justamente para a boca mudar rápido”, indica.
3) Para quem toca mais de um instrumento, recomenda-se o uso de aberturas de boquilhas parecidas. Todos os instrumentos de Teco Cardoso são Mark VI, o que facilita a troca. “ Posso até achar uma boquilha com um som da pesada, mas prefiro sacrificar isso para render na troca de instrumentos. Senão fico com um supersom num instrumento, mas quando pego o outro demora muito para voltar a embocadura. Em um show não dá tempo”, avisa.
4) Se você quer ser flautista com som de nível flautístico, não pode tocar sax alto com boquilha aberta e palheta dura. Se quer ter um som potente de sax, não vai ter o som de nível flautístico, mas sim de um saxofonista que toca flauta, mas “sujinho”, talvez com menos volume. “Os instrumentos são sua voz, é necessário encontrar uma voz que lhe seja coerente, confortável e na qual você se reconheça.”


Setup de Teco Cardoso
Saxofones
Soprano, Alto, Tenor e Baritono: Selmer Mark VI
Boquilhas
Soprano: Selmer Super, Section, várias aberturas diferentes, dependendo da situação
Alto: Meyer de 5 a 7 Small Chamber
Tenor: Norberto
Barítono: Yanagisawa 7
Palhetas
Alto, Soprano e Tenor: Frederick Hemke 2 1/2
Barítono: Frederick Hemke 3 1/2
Flautas
Piccolo Yamaha de Grenadille
Flauta em C Powell
Flauta em G Haynes, 1958
Flauta Baixo Marcato
Coleção de flautas de bambu
Várias flautas indígenas, brasileiras, peruanas, espanholas, chinesas


Discografia Selecionada
Como Solista
Meu Brasil – vencedor do Prêmio Sharp/98, categoria Revelação Instrumental
Caminhos Cruzados – Duo com Ulisses Rocha
O Cinema da Selva – Trilha sonora composta com Caíto Marcondes
Quinteto – com Léa Freire
Thomas Clausen with Teco Cardoso and Léa Freire (a ser lançado)

Grupos
Pé ante Pé – Pé ante Pé e Imagens do Inconsciente
Grupo Um – A Flor de Plástico Incinerada
Grupo ZonAzul – ZonAzul e LuAnoz
Grupo Pau Brasil – Metrópolis Tropical, Lá Vem a Tribo, Babel, Babel ao Vivo e 2005
Grupo Pau Brasil e Edu Lobo – Dança da Meia-lua
Orquestra Popular de Câmara – Orquestra Popular de Câmara e Danças, Jogos e Canções
Quinteto com Nailor Proveta, André Mehmari, Tutty Moreno e Rodolfo Stroeter – Nonada (a ser lançado)
Moacir Santos – Ouro Negro e Choros e Alegrias

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