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Léa Freire

Por: Mariana Sayad e João Marcondes
Abril 2007

Flautista, compositora e uma grande empreendedora!

O título acima não descreve nem a metade de quem é Léa Freire. A trajetória dela é muito interessante, como poderão conferir na entrevista abaixo, começando com sua formação calcada na diversidade da prática instrumental, passando por um longo período longe da música e atualmente compondo e atuando como diretora de uma gravadora de grande reconhecimento entre os músicos.

A entrevista foi realizada dia 24 de setembro de 2004. Atualmente, já foi lançado o CD “Antologia da Canção Brasileira - Vol. 1” com o Bocato. Para saber mais informações sobre os CDs e livros da Maritaca, acesse o site www.maritaca.art.br.

Confiram agora, os principais trechos de uma entrevista muito interessante com muitas histórias divertidas e cheias de música.

Mariana Sayad


Nome completo: Lea Silvia de Carvalho Freire
Data de nascimento: 26 de fevereiro de 1957
Local de nascimento: São Paulo
Em que cidade mora atualmente: São Paulo. Morei em Nova York por um ano e meio. Morei no interior por 11 anos.

Vozes da Música Instrumental
Fale sobre sua formação musical.


Léa Freire
Comecei estudando piano erudito aos sete anos de idade e estudei até os 16 anos. Depois fui estudar violão no Zimbo Trio (CLAM). Eu ganhei uma flauta aos 15 e aos 17 anos, estava dando aula lá de instrumento e solfejo. Depois, passei a dar aula de violão aos iniciantes. Convidaram-me para dar aula de piano, mas eu não tinha mais horário. Fiquei durante três anos. Depois, resolvi ir à Berklee em 1978. Fiquei duas semanas e não gostei. Acabei indo para Nova York e morei lá. Voltei ao Brasil e já estava tocando com o pessoal. Depois parei durante onze anos de tocar para criar meus filhos, de 1986 a 97. Comecei a produzir o meu primeiro CD em 1994, que saiu no final de 1997, chamado Ninhal. Com ele eu abri a Maritaca, que é a gravadora. Hoje, é a minha principal ocupação.

VMI - Fale um pouco sobre suas principais influências.

LF - Os eruditos, o rock ‘n' roll, a bossa nova. Dos 14 até uns 16 anos, eu tocava rock ‘n' roll mesmo e com uma flauta doce, pois era o que tínhamos no momento. Eu tinha uma cobra chamada Jandira, que era muito simpática. Era uma coral falsa. Muito antes do Alice Cooper ter uma cobra, eu já tinha. Quando fui para o Zimbo, fui tocar numa banda muito legal, que contava bem a história pela qual a minha geração passou. Com a invasão do rock ‘n' roll e o fim da música brasileira por causa da revolução - como se censurava tudo que era brasileiro, só entrava o que vinha de fora, que na época era o rock. Então, a minha geração foi criada com isso. Queríamos tocar em banda, mas na verdade acabávamos tocando isso, quando apareceu aquele fusion com Yes e outras bandas de rock, que faziam uma coisa mais misturada com erudito. Disso caímos direto no Gismonti e Hermeto. Pegamos só o restinho da bossa nova. No fim das contas, nós demos a volta ao mundo até voltarmos à música brasileira.

O que eu gosto mesmo hoje é da bossa nova, dos eruditos, principalmente Debussy, Bach e Chopin, dos standards do jazz até anos 60 mais ou menos, porque depois ficou muito chato o tal do jazz... e de música cubana.

VMI - Como foi a passagem do piano e violão para a flauta?

LF - Na verdade, na escola eu tinha que tocar flauta doce. Era matéria obrigatória da aula de música. Todo mundo tinha flauta doce e ficava apitando. Era muito chato. Todos tocavam aquelas musiquinhas de praxe. Eu gostava muito daquela flautinha porque era portátil, pois ficava tirando música naquilo. Foi um dos melhores estudos de música, que eu já fiz, foi na flautinha doce porque eu estudava durante a aula de física. Ficava olhando para a cara da professora, sem tocar, e tirava as musiquinhas na flauta. No recreio, eu ia conferir se tinha tirado certo. Às vezes, tirava errado, aí eu ia corrigindo o ouvido melódico... Isso desenvolveu demais a percepção. Graças aos professores de física e química. No fim, quando eu tinha uns 15 anos, acho que meu pai não agüentava mais aquele apito, e me deu uma flauta transversal. A história é essa.

VMI - Por que você decidiu ir Berklee?

LF - Eu queria aprender mais coisas e estar no meio. Porque se falava muito do jazz, eu queria ver os caras. Eu tinha o disco de todo mundo. Queria ver o que os caras tinham para oferecer. Nós só vamos lá pra fora para descobrir o Brasil. Aqui não tem auto-estima. Não nos damos valor. Na verdade, o Brasil é o país mais musical do mundo. É o maior celeiro musical da galáxia. É aqui que acontece tudo. Você vai para lá só para perceber isso. Aqui, todo mundo falava que lá que era legal. Você vai para lá e descobre, que legal é no Brasil mesmo. Aqui que acontece a nova música mundial. Aqui que tem variedade de ritmo, de melodia, de conceito. Aqui que a coisa brota. É um absurdo.

VMI - Depois, você foi para Nova York. Como foi esta escolha?

LF - Foi divertido. Eu tinha uns 20 e poucos anos. Às vezes, vivíamos com um pedaço de pizza e uma copo de coca-cola. Era nossa ração. Eu vivi muita coisa boa lá.

Todo o conservatório, se você for traduzir para o inglês é freezer . Essa frase nem é minha, é do cara do conservatório de Brasília. Pelo menos, foi ele que me falou. Então, conservatório é freezer: congela e faz todo mundo ficar igual. Tanto que se você escuta o pessoal que sai da Berklee... Você sabe que estudou lá, antes de saber quem é. Porque você todo mundo toca daquele jeitinho. E a música não é essa... Quanto mais variado, melhor. É a sua personalidade... É você... É uma outra forma de expressar o individuo mesmo. Como interagir com outros? A música pode até ser solo, mas é principalmente uma arte coletiva. E o gostoso é quando se vai a uma festa com pessoas variadas com humores diferentes, você vai conversando e a coisa vai fluindo. Quando todo mundo fala a mesma coisa, o assunto acaba muito rápido. Por isso, que o legal do coletivo é que as personalidades se completem, pois têm características próprias. Tocar é isso, conversar. Falar sobre um determinado assunto, que no caso é a música tocada naquela hora.

A Berklee era muito chata e fomos para NY e ficamos lá assistindo tudo que era show. Eu me lembro que era caro para caramba. Eles cobravam por set, então se o cara fizesse dois sets por noite... Cobrava quinze dólares por set e mais uns dois drinks. Eram lugares ridículos, ínfimos. Tipo porão mesmo. Era uma casa super famosa do jazz, que era tipo um porão. Quando não tínhamos dinheiro, sentávamos na escada e ficávamos ouvindo a rebarba de quando abria a porta. Eu vi muita gente boa lá.

VMI - Você voltou ao Brasil em 1979? Chegou a pegar um pouco o movimento Lira Paulistana?

LF - Eu cheguei em novembro de 79. Peguei um pedacinho do movimento do Lira. Mas não participei como músico. Não me lembro de ter tocado lá. Quando eu voltei para cá, eu fiz duo com o Guilherme Vergueiro, que voltou logo em seguida - eu o conheci lá. Foi legal e conseguimos uma certa mídia. Era um barato, porque o Guilherme é um pianista competentíssimo e um arranjador muito exigente. Porque ele escrevia cada coisa. Ali sim, foi uma grande escola de técnica. Porque para tocar aquilo, não era mole não. Foi muito legal. Logo em seguida, em 81 nasceu minha primeira filha, a Maria Rita. Comecei a tocar um pouco menos. Quando nasceu o segundo filho, eu estava tocando numa banda chamada Next ali no prédio da Dacon. Aí, parei. Mudei para o interior e fiquei onze anos lá.

VMI - Como é sua parceria com a Joyce?

LF - A Joyce foi o seguinte, eu estava morando em Sorocaba e tinha um piano lá. Eu compunha algumas coisas. O Sizão (Machado), na época estávamos casados, tocava com ela. Nem sei quem falou para eu enviar as minhas composições à Joyce. Então, gravei uma fita cassete e mandei. E ela começou a colocar letra. Acho que colocou primeiro no Oásis, que é uma música que saiu num CD aqui no Brasil. Tocou bastante no Rio de Janeiro. Depois, ela passou pelo estúdio, onde eu estava gravando o meu CD e ouviu o Samba de Mulher, que estava lá e quis colocar letra na hora, cantou na hora e foi embora. Aí, me ligaram depois para avisar. Foi super legal... Achei ótimo. Depois, ela gravou essa música num outro disco dela. E daquela fita, que mandei para ela nem sei quantas ela musicou e gravou. Mas só a oportunidade de ter essa parceria para mim já valeu.

A música para mim, foi algo que aconteceu. Eu nunca providenciei. A não ser agora na Maritaca, que eu tenho providenciado para que as coisas aconteçam. Eu raramente, providenciei alguma coisa, tudo meio que foi acontecendo. Eu acho isso ótimo. Maravilha!

VMI - Fale sobre a gravação do seu primeiro CD.

LF - Ele foi sendo gravado... Tem muita faixa que eu nem toco. Quando eu vinha para São Paulo, eu colocava uma flauta aqui ou ali. O Sizão que estava produzindo o CD, ia gravando as músicas. Eu mandava a partitura para ele. Tem mais de 50 músicos nesse CD. E já era sistema de cooperativa. Não sei quantos CDs eu gravei de música instrumental por aí. Acompanhando... Fazendo flauta para o pessoal tudo na faixa, então, o pessoal fez para mim do mesmo jeito. Recíprocas.

Já estava vindo de uma nova mentalidade desse povo, que nunca teve nem pai e nem mãe. Sempre foi órfão. Então, não estavam achando isso ruim, achavam normal. Ao contrário da geração anterior, que até hoje se ressente profundamente. Eles tem todo o direito, pois foram prejudicados mesmo, mas o mundo mudou e não adianta reclamar. Quando surgiu essa perspectiva de cooperativa foram surgindo esses novos selos e gravadoras independentes. E hoje se tem uma variedade absurda. No Brasil inteiro. Cada um fazendo um estilo diferente: só choro, só samba, instrumental, só rock, só rag, rap, maracatu, só folclore. Se acha tudo só na rede de independentes. Eu acho isso ótimo.

VMI - Com qual intuito você criou o selo Maritaca?

LF - Surgiu porque quando fiquei fora da música, virei administradora. Eu era diretora financeira da minha empresa de capital aberto. E aprendi muito nessa fase. Quando voltei a ser músico, eu não tinha mais a perspectiva de ser virtuose, fiquei onze anos sem tocar e para voltar... Não é assim... Por mais que eu tivesse a experiência, a linguagem... Tem a parte mecânica, o próprio tempo que se pode dedicar para ser instrumentista mesmo. Eu já tinha filho e um monte de coisas acontecendo. Já não é mais a mesma coisa de quando se é jovem e não tem mais nada para fazer a não ser encher o saco do vizinho estudando flauta. Existe um nível mínino alcançado, mas não será mais um virtuose.

Eu queria muito ver o trabalho das pessoas acontecendo, então, eu somei minhas aptidões, e resolvi criar uma gravadora. E uma outra coisa que sinto muita falta no Brasil é de partitura. O pessoal fica tocando esse negócio do Real Book. Eu acho isso uma atitude de colonizado triste. Temos tanto repertório aqui no Brasil e o pessoal não toca porque não tem o Real Book brasileiro no caso. E não é questão de direito autoral, porque todos os Real Book que eu vi até hoje eram copiados. Eu nunca vi um Real Book original na minha vida e olhe que é um livro de 600 páginas e todo mundo copia. Eu fiz dois livros de partitura aqui, mas ainda não é o formato. Ficou bacana demais. É um formato com folha interna de quatro em quatro para não ter que ficar virando página e um papel muito legal. Tem um texto explicativo sobre as origens dos ritmos em português e em inglês. É todo ilustrado. Tem formato que alia a brochura a espiral, então ao mesmo tempo que se tem uma capa, que você pode identificar na prateleira, dentro é espiral para a folha não fechar na sua cara. São dois livros para inglês ver mesmo. Ficou legal. Talvez para o objetivo principal, o legal mesmo é ter melodia, cifra e copiar mesmo. É ou não é? A idéia é difundir o repertório brasileiro. Como esses Song Books do Almir Chediak também são muito chiques para idéia. Os da Maritaca então, são primores. Uma maneira fácil de gastar dinheiro.

VMI - Qual o repertório desses livros de partitura?

LF - São com músicas dos CDs da Maritaca. Tem o do Mozar Terra. Todas as músicas do CD dele, que é o Caderno de Composição. Na verdade, quando fiz os livros, fiz dois para os CDs do Núcleo Contemporâneo no esquema de cooperativa. E não me interessa em qual gravadora está, eu quero que o repertório se multiplique. Agora, o Quinteto e o Caderno de Composição estão na Maritaca, que virou distribuidora também. Eu ainda não abandonei a idéia da partitura, ainda vou fazê-la.

VMI - Voltando muito no tempo, quando você começou a compor?

LF - Eu estava no ginásio... Eu acho. Acho que comecei a querer compor quando comecei a tocar violão porque era mais fácil. Piano não dá para carregar e o violão você leva e qualquer intervalo, você toca... No violão tem a harmonia ali... Comecei a compor por aí mesmo, mas muito diletante ainda. Comecei a compor mesmo quando parei tocar e não tinha com quem tocar e não tocava. Tinha o piano lá e o violão. Então, as poucas horas livres, que tive na minha fase administradora – porque eu trabalhava 14 horas por dia, fazia faculdade, tinha dois filhos para criar, que estavam em época escolar, fazia supermercado, levava todo mundo ao médico... Não sobrava horas... Comecei a compor lá... Aí as pessoas gostaram e continuei fazendo... Recentemente, estou passando por uma fase mais erudita, então, estou fazendo um trabalho com Gil Jardim, que é o próximo disco. O Teco está produzindo, o Gil fará alguns arranjos e regência. Tem outras pessoas escrevendo outras coisas. Terá a participação do Sujeito a Guincho. Vamos ver o que acontece.

VMI - Como foi sua parceria com Filó Machado?

LF - Esse é um irmão. É mais que um irmão, porque eu escolhi. Eu conheci o Filó em 1975. Eu tinha acabado de ganhar a tal da flauta e estava tendo aulas de violão no Zimbo Trio. Tínhamos um amigo em comum, que é o Dudu, que hoje é produtor de música, que queria que fossemos ajudá-lo a defender a música dele, que tinha sido classificada num festival do Clube Alto de Pinheiros. Um belo dia, o Dudu passou em casa e me levou ao Terceiro Whisky - onde o Filó tocava na época - e ficamos esperando terminar a entrada do Filó na porta. Quando ele entrou no banco da frente do fusca, começou a tocar a música, que eu nunca tinha ouvido e pediu para eu fazer uma melodia na flauta, que eu meio de anotei num papelzinho. Tocar flauta no banco de trás de um fusca com uns cinco caras dentro e um tocando violão no banco da frente, não é algo muito simples. Mas o Filó gostou da onda...

Então fizemos o festival, fizemos outras coisas e começamos a andar juntos, que nem loucos. Nós ficávamos pra cima pra baixo com flauta e violão nas escadarias da praça Roosevelt. Vai fazer isso hoje sem levar a Swat. Ficávamos lá tocando com uns mendigos na praça. Ele mora numa Kit Net lá na Nestor Pestana, que não cabia ele, então imagina, eu, ele, a flauta e o violão... Por isso ficávamos lá na praça tocando e compondo um monte de coisas... Era Cosme e Damião... De noite eu saía e ficava com andando com o Filó. Ele não só tocava nos lugares, como também dobrava... Era uma confusão... E eu atrás com a flauta. Somos amigos desde então... Fizemos um monte de coisas juntos... Ele foi pra França, eu fui pra não sei onde, depois para Sorocaba. E agora, finalmente, fiz um disco dele como eu acho que deveria ser. Chamado Jazz de Senzala... Ficou bem bacana... Gostei... O Filó é o gênio da raça. Essas coisas que só acontecem aqui no Brasil. Eles malucos de pedra, tipo Filó, Arismar, Hermeto... Você não vê isso em lugar nenhum.

VMI - Quando você entrou para o grupo de Teco Cardoso? Conte-nos um pouco sobre isso

LF - O Teco foi meu aluno no CLAM. Ele apareceu lá com 16 anos - e eu tinha 19 - com a flauta, que queria aprender. Eu avisei que eu era autodidata na flauta, então, se ele quisesse aprender flauta enquanto instrumento, ele teria que procurar outra pessoa. Mas pro lance do choro, da linguagem e improvisação brasileira. A postura mesmo, pois a história poderia ficar por ali. Na verdade, aula mesmo foi uns dois meses pra saber onde ficava o dedo, como funciona o diafragma. E o depois começamos a tocar juntos.

Naquela época, eu tocava em vários conjuntos. Tinha vários ensaios e festivais. E nesses conjuntos, eu comecei a levar o Teco junto, assim passaram a ter duas flautas. Como eu era muito mandona, ninguém reclamava e porque era o Teco Cardoso. Logo em seguida, fui pra Berklee. E tudo que eu fazia, eu passei ao Teco. Antes disso, fizemos alguns shows. E o primeiro show dele, foi lá no Teatro Cultura Artística. Eu, ele, Filó Machado, Eliane Elias, Arismar do Espírito Santo e Nico Assumpção. Está bom, né? Aí, ele já estava na roda...

Depois, quando decidi parar de tocar, o Teco apareceu lá em casa com uma flauta... E me emprestou, pois eu estava sem. Ele disse, que era a primeira flauta dele, dada pela sua avó. A flauta ficou comigo onze anos. Ele não queria de volta, não queria vender e não deixava eu fazer nada com aquela flauta. Então, de vez em quando eu era obrigada a tocar a flauta porque não tinha outra. Quando eu voltei a tocar, cheguei a fazer o lançamento do Ninhal com a flauta da avó dele. Aí, ele chegou para mim e falou: “Chuchu, acho que você está precisando de uma flauta nova”. Ele me vendeu uma flauta boa, e me pediu a flauta da avó de volta. Ou seja, essa daí ele não vai vender nunca. É de estimação.

VMI - E como foi essa parceria para a gravação do CD?

LF - A Maritaca estava começando e o Núcleo também. Eu tinha um quinteto e eu chamei o Teco para fazer todos aqueles malabarismos na flauta e eu faria só os efeitos, notas longas e composições. Era o Pepe (Rodrigues), Sylvio Mazzuca e o Tutty (Moreno) na cozinha. Mais eu e o Teco, que tinha o quarteto dele que era o Benjamim Taubkin, o Sylvio Mazzuca e o AC Dal Farra. E o Teco sempre teve contato com o nosso repertório e gostava.

Surgiu para ele fazer uma mini-turnê nos Estados Unidos em 1998, que eram dois concertos na Universidade de Miami e dois concertos no Blue Note em Nova York. Ele me convidou para ir com eles e disse: “Nós vamos tocar o seu repertório, mas com o meu quarteto (que virou quinteto)”. Tocamos esse repertório exaustivamente aqui, antes de irmos para lá. Quando chegamos em NY, o Teco já tinha marcado estúdio. Vou falar: aqui nós temos a música, mas lá eles têm o estúdio, principalmente por causa do piano. Só sei que gravamos o disco do quinteto inteiro numa seção de oito horas. Foram oito músicas com vários takes para escolher. Saímos de lá em uma seção com o disco gravado. Eu gosto muito desse disco.

VMI - Em 2000, você gravou um CD com Arismar e Hermeto? Como foi o desenvolvimento deste trabalho?

LF - Em 2000? Em 2000, eu gravei um CD do Arismar na Maritaca, eu também toquei, chamado Estação Brasil. O Hermeto tem participação no CD 10 Anos, que eu saiba. O Estação Brasil acho que foi lançado em 2002 e tem participação no Naná Vasconcelos, da Jane Duboc, do Proveta e o sexteto do Arismar, do qual eu faço parte. Se bem que o Arismar não tem uma banda, que se pode chamar de banda do Arismar. Pode ser um trio, duo, quarteto. É uma coisa bem variável. O Arismar está sempre em movimento. É filme, não é foto. Não dá para congelá-lo. Ele está sempre se movendo. Um dos maiores carmas e prazeres da minha vida é escrever as partituras das músicas dele. Porque ele não toca aquilo duas vezes do mesmo jeito. É necessário negociar como ele vai querer, mas aí ele faz um terceiro jeito. Eu comecei a tocar com o Arismar em 1998 ou 1999. Ele é vizinho, então, nos vemos bastante e tocamos muito.

VMI - Antes de vocês tocarem juntos, já eram amigos?

LF - Já. Eu conheci o Arismar nos tempos do onça. Tinha um bar chamado San German , mas eles brigaram, acabou virando Sanja e hoje é um bingo. Nós nos cruzávamos por aí. Num época, ele morava ali na São João e era casado com a Silvia.

Quando eu ainda estava de diretora financeira, eu encontrei a Lilian Carmona e a Silvia Góes num projeto beneficente no Memorial da América Latina, que o Sizão foi tocar e eu fui também para ver os amigos. A Lilian falou para eu ir tocar com ela, pois tinha uma mulher que queria montar uma banda só com mulheres para tocar num programa de televisão. Fomos tocar no programada da Ana Maria Braga antes dela ir para a Globo. Acho que era Record ainda. Agüentei uns quatro meses daquilo ali. Não dava mais. Acho que tiveram só dois ou três convidados, a Elza Soares e o Jair Rodrigues, que valeram a pena ter tocado com eles. O resto era fazer coreografia de pagode e tocar cinco minutos e ficar seis horas embaixo do holofote, pois ela gravava dois a três programas por dia. Era um absurdo. Enfim, já era um motivo para eu vim para São Paulo uma vez por semana. E nos divertíamos muito, pois você sabe como é, mulher quando se junta...

Ficamos muito próximas e fizemos várias festas. E a Silvia e a Lilian são excelentes. Eu me lembro de uma frase bem legal, assim que eu cheguei ao grupo eu falei: “Gente, vocês vão me desculpar, pois às vezes eu falo uns negócios meio pesados”. Uns quinze minutos depois: “Gente, vocês vão me desculpar, mas eu não estou agüentando, pois vocês são muito punk para mim”.

Depois, eu e a Silvia fizemos um duo numa casa de cultura lá praça Benedito Calixto. Fizemos um duo ali de piano e flauta. E a chamei para gravar um disco. Fora o Ninhal, esse foi realmente onde começou o lance da Maritaca produzir outras músicas, que foi lançado em 2001.

Nesse ano, foi lançado Silvia Góes, chamado Piano à Brasileira, que é piano solo e tem a participação do Arismar em algumas faixas. Depois saiu o disco do Tibô Delor, em que ele só tocou Tom Jobim junto com clássicos. Assim, ele juntou Sabiá com Pássaro de Fogo, de Stravinsky. Juntou Amparo com a Valsa nº. 2 de Chopin. Tem a participação do Paulinho Jobim também. Nesse ano, teve o Ninhal, que estava esgotado, então, eu remasterizei e coloquei para andar. Aproveitando que o Mozar Terra estava lançando o Caderno de Composição, ele entrou também como lançamento da Maritaca, mas era do Núcleo. Mas o Mozar é um amigão da antiga. Eu o conheci em Nova York, depois ele foi morar em Paris. Fomos até lá para visitá-lo.

Depois fomos morar no Bororé, que é atrás de Interlagos, que foi uma fase maravilhosa. Tinha um sítio de um alemão, provavelmente fugido da guerra, com umas casinhas que ele construía para alugar lá dentro. O Amado Maita, baterista, foi morar lá. Ele falou com o Guilherme Vergueiro, que também foi morar lá. Eu e o Sizão fomos morar lá. Depois foi o Mané Leão, o Mozar Terra, foi a esposa do Peter Woolley. Ou seja, virou um churrasco 24 horas. Lá tinha criança, cachorro e churrasco. Ficamos lá uns quatro anos. Foi bem legal. Então, o Mozar nessa época do Bororé, gravamos grande parte do repertório no estúdio do Três do Rio, que era ali em Interlagos. Eu toquei várias coisas do Mozar em 1982 ou 83. Era o tempo da Metalurgia... Super famosa. Estava na época do Lino Simão, onde eram os ensaios.

Aliás, o Lino se casou com uma prima minha, Cláudia Ferrete, que é cantora. Eles tiveram um filho chamado Pedro, que está tocando uma guitarra infernal... Muito. Ele mora aqui ao lado. Você vai vendo essas gerações. Por menos que se faça, que se tenha sucesso. O sucesso na verdade é fazer o que se gosta e ver que tem alguma coisa que você negou. Nem que seja só a postura: você pode ser músico, que não vai ficar cor-de-rosa com bolas vermelhas na cara. Não é uma virose. Está tudo certo. É o seu talento. Eu fico muito contente quando vejo essa molecada quebrando tudo. Acho um máximo, principalmente, agora que estou mais escrevendo. Eu estou vendo que posso escrever o que eu quiser, que sempre vai ter um moleque, que vai conseguir tocar aquilo. Eles estudam mesmo, tocam mesmo... Está tudo certo.

VMI - Como surgiu a idéia do CD "Baladas Brasileiras”? Como está o andamento?

LF - Já está terminado. Na verdade, será “Canções Brasileiras”. Porque balada é um gênero musical que não existe no Brasil. Balada nos Estados Unidos é música lenta e no Brasil é dançar tecno e encher a cara.

Todos acham que tocar rápido e forte é o mais difícil, mas o mais difícil é tocar música lenta. Porque tudo que você fizer estará na cara. Você não pode exagerar na dose porque perde a característica. É regra três, onde menos vale mais. Você tem que ser zen, relax e conhecer profundamente o que está rolando para fazer só as premiadas. Então, tocar música lenta, canção ou samba-canção é um outro estágio... Lá fora quando vai fazer um teste para tocar numa banda, se for de jazz, o teste é tocar balada, pois eles vão ver se você é apressado, se vai puxar o tempo para frente ou se vai se perder no meio do caminho porque é muito lenta.

O repertório do CD é só de compositores maravilhosos, como Ari Barroso, Lupicínio (Rodrigues), Lamartine (Babo), Filó Machado, Tom Jobim, Edu Lobo, Nelson Caquinho, Amâncio Cardoso... Só para mencionar alguns. Pérolas da música brasileira. Pegamos um pessoal, que sabe tocar balada, então, ficou o Sizão Machado de contrabaixo, o Edu Ribeiro de bateria, o Michel Freidenson no piano, o Djalma Lima na guitarra, eu e o Bocato. Escolhemos vinte baladas e gravamos em três seções. Serão dois CDs. O primeiro sairá neste ano e o segundo ano que vem. Fora isso, tem o disco novo do Vinicius Dorin, da Heloísa Fernandes, que ficou entre as cinco finalistas do penúltimo Prêmio Visa instrumental, em que ganhou o Yamandú Costa. Tem o meu, que vai sair logo mais. Tem o Nenê e mais um monte de projetos. O que não falta é matéria-prima nesse país. Acho que se eu ganhasse na loteria, eu iria fazer uns 200 mil discos e todos de uma qualidade absurda porque é punk o que tem de gente aí fazendo de tudo.

Voltando a história do disco do Arismar, ele gravou o Estação Brasil e agora o 10 Anos, que foi relançado em 2004, foi produzido pela Velas em 1993 e em 94 ganhou o Prêmio Sharp de melhor disco instrumental. Estava fora de catálogo, então, o Arismar pediu o Máster e eles deram numa boa. A Maritaca refez a capa e relançou. Esse tem a participação do Hermeto, da Jane, do Sion, do Valmir Gil... Um monte de gente.

O disco do Vinicius Dorin também tem uma faixa com o Hermeto, com o André Marques, o Arismar, o Nenê, o Írio Jr. e aquele baixista de Minas (Enéias Xavier). Tudo gênio. Outro dia, tocando com o Bocato e apareceu um moleque chamado Magoo. Nunca tinha ouvido falar. Ele sentou naquele piano e destruiu tudo. Não acreditei. Muito legal. Tem outro menino que admiro muito, que é o Alessandro (Penezzi), que toca violão lá no Ó do Borogodó. É um absurdo. E o outro o Rodrigo (Y Castro), que toca flauta. O Zé Barbeiro e o Miltinho.

Aliás, numa época o Zé Barbeiro e o Miltinho me chamaram para tocar choro com eles e eu aceitei. Era o seguinte: tocar todo domingo da uma às quatro da tarde no hotel Meliá (ao lado do D&D) durante o almoço, que era flauta, violão, cavaquinho ou bandolim. Fiquei quase dois anos lá. Eu perdia todos os almoços do família para tocar com eles. Eles têm a linguagem do choro, que é maravilhosa. Qualquer praia que você for aqui, tem. Eles sabem tudo e por quê? Porquê não tem Freezer. A escola seria legal se fosse um centro de informação, como uma biblioteca. Mas toda vez que o estudo da música (ou da arte em geral) é dirigido, ele acaba com o principal da história que é a expressão do individuo. Então, é preferível você ter vários professores particulares da sua escolha, do que entrar num esquema de escola, que transforma você numa coisa fabricada. Num produto, que não tem nada a ver com a história que é tocado.

VMI - O que você acha da nova geração de músicos?

LF - Eu sou apaixonada. Ai os meus 20 anos... Acho um barato. Eu acho que eles têm postura, sotaque, nacionalidade e identidade. Técnica, tem formação e sabem tudo... Com certeza. Não há o que segure essa nova geração. Fico super feliz. Se é que verdade, de termos mantido essa chama acesa para que essa geração pudesse aparecer. Se é que é isso... Está tudo certo. É uma coisa tão bonita a música brasileira, que não pode acabar. O pessoal vem invade e pega para eles. Sai... Não é bem assim. E acho mais legal ainda porque ela é totalmente desvinculada da globalização, do marketing, da moda, do ser cult. E todas essas bobagens... Ela não tem nada a ver com isso. O pessoal está descobrindo a música pelas veredas, porque não está nas avenidas. Quem está na onda de música brasileira, só está porque foi procurar. Não cai no colo de ninguém e se tem tanta gente assim é porque estão procurando muito. A tendência é que fique cada vez mais legal. Eu acho ótimo!

VMI - ara você, qual é o futuro da música instrumental no Brasil?

LF - Infinito. Não tem fim. Tem um grande caminho pela frente com mil opções... Graças a Deus não tem aquela escolinha. Então, desde banda de pífanos até o Hermeto Pascoal, se tem uma vertente de caminhos inexplorados infinita, como a ciranda e a caatinga. O fandango lá do sul de São Paulo e norte do Paraná é dez. O pessoal tem um sapateado, que é o máximo... Eu comprei até o tamanco, só falta a coragem para aprender o tal do fandango. Muito legal. Você vai pegando tanto regionalismo. E cada um faz o que bem entende, graças a Deus. E vai pegando coisas daqui e dali... Dá para você inventar um bilhão de outras coisas juntando, separando, purificando, despurificando. Ou seja, tem um universo pela frente.

O que precisamos é tomar de volta a mídia, que nos foi comprada. A composição acionária dela pertence às multinacionais, que não têm o menor interesse na cultura brasileira. Então, deixa os caras com a mídia deles aí e vamos fazer outra coisa. Precisamos construir uma mídia para divulgar e tornar ainda mais fácil o acesso de mais gente para esse tipo de coisa. Se existe algum tipo de coisa que define o Brasil é a música. Não é a música daquele jeito que faz no Rio ou no Belém do Pará, é a diversidade. É isso que temos que prezar. Eu tenho orgulho disso. Acho que é uma sorte ter nascido aqui. Se eu tivesse que conviver com aquelas cítaras, eu estaria de saco cheio. Aqui, eu adoro tudo. Pronto! Valeu! Acho que o universo conspirou a meu favor. No Brasil a maior definição é a natureza e a música que ele produz, que é maravilhosa. Qualquer músico que esteja no Brasil, só tem a agradecer.

Léa muito obrigada!

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